Friday, May 30, 2008

A (in)sustentável leveza do poder

O Sínico

A (in)sustentável leveza do poder

José Carlos Matias

“There are those who move people by enlightened virtue and those who make people obedient by the power of authority. It is like the phoenix in flight, which all the animals admire, or tigers and wolves stalking, which all the animals fear."
Dito budista citado no livro “Mastering the Art of War” de Zhuge Liang e Liu Ji.

“It is better to be feared than loved, if you cannot be both”
Niccolo Machiavelli em “O Príncipe”

O poder sempre foi difícil de medir. Exércitos, tecnologia militar, fábricas, Produto Interno Bruto são quantificadores tradicionalmente usados como pesos para quantificar a distribuição das capacidades no sistema internacional. Contudo, se entendermos o conceito de poder de uma de uma forma mais abrangente, ou seja como a capacidade de influenciar o comportamento de outro (neste caso outro estado) ainda que contra sua vontade, a grelha de análise tem que ser mais complexa e terá que integrar outros elementos – quer quantitativos, quer sobretudo qualitativos.

Enquanto tradicionalmente se utilizam dados ligados ao “hard power”, nesta outra forma de olhar para a distribuição das capacidades devem ser usados indicadores de “soft power”. A avaliação do peso da leveza desse poder implica uma análise sobre aspectos ligados à cultura, ideologia e acção diplomática, entre outras vertentes. O académico norte-americano Joseph S. Nye carimbou este conceito de forma veemente no seu livro “Soft Power: The Means to Sucess in World Politics”. Em traços, gerais o “poder macio” (chamemos-lhe assim) diz respeito à capacidade para alguém conseguir os seus objectivos no plano internacional sem usar métodos de coação ou através de pagamentos. Ou, de forma mais incisiva, “o soft power reside na capacidade para influenciar as preferências dos outros, de liderar pelo exemplo e atrair os outros a fazer o que se pretende que eles façam”, explica Nye. Alguns autores, como Joshua Kurlantzick, têm um enetdnimento mais abrangente e incluem nesta grelha de análise também a ajuda ao desenvolvimento, investimento externo e participação em organizações multilaterais. Seja em stricto sensu ou em lato sensu, o conceito entrou no jargão dos analistas e serve de auxílio importante para perceber a ascensão da China, especialmente desde 1989. Uma emergência que não pode ser apenas entendida tendo em conta o crescimento económico e as despesas militares.

O Poder da Língua e da Cultura

A língua e a cultura são instrumentos per se do “poder macio”. A este respeito, Lee Kuan Yew pai-fundador e “Ministro Mentor” de Singapura assegura que “o soft power apenas é alcançado apenas quando uma nação é admirada por outra que quer emular aspectos da sua civilização”. Ao longo dos últimos anos, a China tem dado passos significativos na direcção de se tornar num actor atractivo no plano internacional.

Começando pela cultura e pela língua, desde 2004 que, através do Gabinete do Conselho internacional da Língua Chinesa, tem criado uma rede de Institutos Confúcio, seguindo o caminho traçado desde há dezenas de anos pelo Reino Unido, com o British Council ou pela Alemanha com o Goethe Institut. O Instituto Confúcio, presente em 36 países de todos os continentes, serve de elo de transmissão e promoção da língua e da cultura chinesa, associando-se a parceiros locais – universidades e institutos superiores. O objectivo do Ministério da Educação da RPC é que dentro de dois anos haja 100 milhões de pessoas a aprender chinês como língua estrangeira. Além de dar a conhecer a sua língua fora de portas, a China recebe cada vez mais estudantes estrangeiros que estudam não apenas a língua mas também a história, a arte a filosofia chinesa. Certamente que no médio-prazo começará a ser visível o efeito desta aposta em várias dimensões, especialmente ao nível da “tradução” (no sentido lato) que é necessária no diálogo ainda desconcertado entre a China e o resto do mundo, especialmente com o Ocidente.

Um “Consenso de Pequim”?

Num outro plano, naquilo que Kurlantzick classifica de “ofensiva de charme da China”, salienta a forma como a diplomacia chinesa evoluiu desde o fim da Guerra Fria revestindo-se na última década de uma dinâmica impressionante. Em primeiro lugar, Pequim enfatiza a lógica de “win win” (jogo de soma positiva) nas relações internacionais, contrariando a percepção de “jogo de soma negativa” típico da Guerra Fria. Em segundo, contrariamente ao intervencionismo norte-americano, a China acena com o princípio da não ingerência, seguindo a fórmula enunciada por Zhou Enlai dos Princípios da Coexistência Pacífica. Além disso, a RPC surge no plano internacional como um modelo de nação em desenvolvimento em que o processo é controlado a a partir do topo do estado, evitando uma abertura abrupta dos mercados que tantos estragos causou em países latino-americanos e do sudeste asiático que seguiram as receitas do “Consenso de Washington”. Estas três faces da China atraem sobretudo os países em desenvolvimento, que procuram alternativas ao modelo de cooperação dos EUA e da Europa.

O ex jornalista Joshua Cooper-Ramo formulou o conceito de “Consenso de Pequim”, que, em oposição ao de Washington (neoliberal), não promove soluções uniformes para diferentes situações, nem terapias de choque “iluminadas”, preferindo propor modelos de desenvolvimento baseados nas características de cada país. Este “Consenso de Pequim” nunca foi referido pelas autoridades chinesas, mas, na verdade, transporta consigo aspectos fundamentais referentes á postura da China no mundo ao longo dos últimos dez anos.

Paz e prosperidade na vizinhança

Ao mesmo tempo que lança pontes em várias direcções numa estratégica multifacetada e multi-direccional, a RPC procura criar um arco de paz e prosperidade na sua vizinhança. Longe vão os tempos da China maoísta que assustava o Sudeste Asiático, que se uniu numa frente anti-comunista, criando a ASEAN – Associação das Nações do Sudeste Asiático, cujo principal “leit motiv”, aquando da sua criação nos anos 1960, foi o combate à expansão do comunismo. Actualmente, interdependência económica e as ligações e a entre a China e a ASEAN atingiram níveis históricos, numa altura em que as duas partes negoceiam um Acordo de Livre Comércio. Ao nível do diálogo regional sobre questões de segurança, Pequim é uma parte activa quer no processo do Fórum Regional da ASEAN quer no Grupo ASEAN Mais 3 (China, Japão e Coreia do Sul). A grande viragem aconteceu em 19997 quando, na sequência da Crise Asiática Financeira, Pequim não desvalorizou a moeda num gesto de grande apoio aos países afectados pelo descalabro dos mercados cambiais e financeiros.

Esta política de boa vizinhança é fundamental para a modernização da China. Daí que desde meados dos anos 1990, Pequim tenha resolvido os diferendos fronteiriços que mantinha com países como a Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão.

Emergência e Desenvolvimento Pacífico

Num plano mais global, a RPC tem procurado fazer eco da tese do “desenvolvimento pacífico” (hépíng fāzhǎn), que sucedeu no jargão oficial à “emergência pacífica (hépíng juéqǐ), abandonada por causa das implicações do termo “emergência”. O objectivo desta tese (e postura) é dissuadir os efeitos da recorrente tese da “China Ameaça” que tanto caminho fez (e ainda faz) nos EUA, Taiwan e Japão. No fundo trata-se de projectar uma imagem da China enquanto poder responsável. Nas palavras do académico chinês Wang Yizhou, “mantendo uma postura construtiva e proactiva, a China vai entrar no século XXI com a imagem de um grande poder responsável. Com o passar do tempo a chamada teoria da China Ameaça vai ser derrotada”. Como sabemos ainda há um longo caminho para que esta previsão seja cumprida na plenitude.

Segundo Susan Shirk, especialista em assuntos chineses e ex adjunta do vice-secretário de Estado dos EUA durante a administração de Bill Clinton, a tese da “emergência pacífica” assenta em três pilares: acomodação com os países vizinhos, ser um “player” em organizações multilaterais e usar laços económicos para ganhar a amizades internacionais. Em todos estes aspectos a China tem sido relativamente bem-sucedida. No primeiro pilar, como referimos, foram dados passos de gigante na criação de um ambiente de paz e co-prosperidade na vizinhança (apesar dos problemas com Taiwan e das sempre complexas relações com o Japão). No segundo, além da citada dinâmica com a ASEAN, a China lançou com a Rússia a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) que junta ao “urso” e ao “dragão”, as cinco antigas repúblicas soviéticas: Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Turquemenistão. A estratégia multi-direccional tem sido visível também na medida em que a China cria mecanismos de diálogo intensos com um grupo de países como são os casos (todos com as suas especificidades) do Fórum China-África, do Fórum para a Cooperação entre a China e os Países Lusófonos (Macau) e dos laços cada vez mais fortes (complexos) com a União Europeia. Fora do plano do multilateralismo mais “regional”, além de ter aderido à Organização Mundial de Comércio (OMC), Pequim tem participado cada vez mais em missões de manutenção de paz das Nações Unidas. No que diz respeito a “usar laços económicos para criar amizades internacionais”, a cooperação com África, com a ASEAN ou os acordos de livre comércio com a Austrália e a Nova Zelândia são alguns exemplos claros desse princípio.

Uma China “Neo-Bismarkiana”?

Todo este frenesim tem suscitado um debate bastante interessante. Afinal, a China já não mantém o “low profile” que Deng tinha delineado embora Pequim ainda seja bastante reticente em não seguir o outro conselho do “Pequeno Timoneiro”: nunca tomar a dianteira nas grandes questões internacionais. Numa análise sobre a série de parcerias estratégicas que a RPC tem firmado com vários países na última década, Avery Goldstein classifica a estratégia chinesa de “Neo-Bismarkiana”, numa alusão comparativa à Alemanha de Otto von Bismark unificador da nação germânica. O primeiro chanceler da Alemanha, durante as últimas décadas do século XIX, procurou criar laços amigáveis com as restantes médias e grandes potências do “Velho Continente” para que esses países evitassem travar o crescimento da Alemanha. Os parceiros não afrontavam o recém-criado grande país do centro da Europa porque teriam bastante a perder em termos económicos e diplomáticos com uma ruptura.

Tendo em conta o que aconteceu na primeira metade do século XX, esta perspectiva sugere que a ascensão de uma China será no médio-prazo bastante mais agressiva. Historiadores e estudiosos das relações internacionais têm analisado as fases de transição de poder no sistema internacional, salientando que quase sempre essa fase é acompanhada por conflitos de grande dimensão. A excepção aconteceu aquando da transição da posição de primeira potência mundial da Grã-Bretanha para os EUA. Mas será que podemos comparar essas situações com o momento que vivemos? A História repete-se mesmo? E será que a China vai mesmo estar em “paridade de poder” económico com os EUA dentro de 20, 30 ou 40 anos?

Percepções, obstáculos e limites

Neste jogo de balança de poderes – no sentido realista - e também de re-equilíbrio das percepções – numa perspectiva construtivista – a ofensiva de charme de Pequim enfrenta sérios desafios e limitações.

O primeiro obstáculo nasce da percepção de que a China está a preparar-se para ascender degrau a degrau ao pináculo do poder do sistema internacional para disputar a liderança com os EUA. Os receios motivados pelas analogias que são feitas ao que sucedeu no século XIX durante a era do imperialismo multi-polar levam a que o dilema de segurança (“preparar-se para atacar antes que o adversário se torne demasiado poderoso) prevaleça, especialmente num mundo em que, apesar do reforço dos poderes de organismos multilaterais como a OMC e do aumento da interdependência, a “anarquia” e no sistema inter-estados não desapareceu.

Na política externa, a obsessão em seguir à linha a lógica “soberanista” e de “não interferência” tem contribuído para uma imagem negativa da China perante as opiniões públicas – sobretudo as “consciências ocidentais” – que consideram que Pequim pode e deve fazer mais para ajudar a resolver o problema no Darfur ou a situação em Myanmar.

Calcanhar de Aquiles doméstico

Enquanto poder normativo a China tem assim várias limitações. Ou seja Pequim não tem a capacidade para controlar e transformar a agenda política global e legitimar uma nova ordem internacional. Por outras palavras, o “Consenso de Pequim” não surge como uma receita alternativa como modelo com aspirações de ser aplicável à escala global – quanto muito é atractivo para países em desenvolvimento na América Latina, África e Ásia.

Por outro lado, as fragilidades na política doméstica constituem igualmente um factor de erosão dos esforços da ofensiva de charme de Pequim. A imagem de um país em que crescem as desigualdades, há sérios limites à liberdade de expressão, a corrupção é endémica e os problemas ambientais são mais que muitos constitui um outro grande obstáculo. A recente crise no Tibete e as reacções a nível internacional foi um bom exemplo de como um rastilho pode queimar parte do trabalho que foi desenvolvido para promover uma imagem de um regime que apesar de ser autoritário é benigno. Em sentido inverso, a forma humana e transparente como o governo tem lidado com a tragédia de Sichuan indica que as autoridades conseguem também reagir a um cenário de crise, neste caso de catástrofe, de maneira eficaz, mobilizando os esforços necessários e sem criar barreiras no acesso à informação.

Da árvore para a floresta

Estando em transição e em desenvolvimento é natural que da RPC surjam sinais contraditórios face à designada “estratégia de charme” e de utilização dos mecanismos do “poder macio”. Apesar das limitações reais aqui referidas, não devemos deixar de olhar para tudo isto como um processo complexo que teve início após a repressão brutal sobre os estudantes em Tiananmen de 1989 e se tornou mais visível nos últimos dez anos. Alguns autores consideram que a crise no Tibete e as reacções a nível internacional indica que o período de “charme” terminou. No entanto são frequentes (e normais) os erros de análise quando faz a História do Presente. Confúcio dizia que “se pensar em termos de um ano, plante uma semente; se for com o horizonte de dez anos, plante árvores; se for em termos de cem anos, ensine as pessoas”. Dez anos depois do início desse movimento de “ofensiva de charme” é importante diferenciar as árvores da floresta, sabendo que o “soft” e o “hard” são dois lados da mesma moeda (poder).

Saturday, May 24, 2008

O vigor e os desafios de Wang Yang

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 17-04-2008

José Carlos Matias


Primeiro criticou o conservadorismo das elites locais. Depois clamou por uma emancipação do pensamento. Mais tarde lançou o desafio da criação de uma “zona económica especial de cooperação” com Macau e Hong Kong. A chegada de Wang Yang à liderança do Partido Comunista Chinês (PCC) de Guangdong agitou as águas do Delta do Rio das Pérolas e colocou muitos agentes económicos a pensar no que realmente quer o delfim que, em Dezembro de 2007, trocou a chefia do Partido no Município de Chongqing pela liderança do PCC na província mais rica do país.
Perante o vigor de Wang, Lau Nai-keung, membro da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês por Hong Kong, perguntava há semanas no South China Morning Post se estamos (referindo-se à região vizinha) preparados para o desafio de Guangdong. Naturalmente que esta questão é extensível à RAEM. O que quer dizer Wang Yang com “emancipação do pensamento” (sixiang jiefang)? Como devem ser entendidas estas declarações pouco ortodoxas face ao habitual “low profile” de secretários provinciais? Antes de mais, quem é Wang Yang?

Um tuanpai especial

Aos 53 anos é uma estrela emergente da Quinta Geração (diwudai) de líderes, sendo o mais jovem membro do Politburo do PCC. Aos 33 anos tornou-se presidente da Câmara Municipal de Tongling, na província de Anhui, antes de ascender a vice-governador provincial. Com pouco mais de 40 anos desempenhou de forma convincente o cargo de vice-ministro da Comissão Nacional da Reforma e Desenvolvimento. Mas o percurso de Wang não pode ser entendido sem ter em conta a sua passagem pelos quadros dirigentes da Liga da Juventude Comunista Chinesa (LJCC), liderada na altura - anos 1980 – pelo actual presidente Hu Jintao. Desde então Wang pertence ao chamado grupo-facção dos tuanpai, quadros da LJCC que ascenderam ao poder ao longo dos últimos anos de uma forma directa ou indirecta pela mão de Hu. Aliás, a actual configuração dos quadros dirigentes de topo do Partido e do Estado em Guangdong ilustra uma mudança da esfera de influência da província cantonense que durante mais de dez anos esteve sob o chapéu da chamada facção de Xangai do ex-presidente Jiang Zemin, quando Li Changchun, primeiro, e Zhang Dejiang, depois, lideraram o PCC em Guangdong. Agora, os três principais cargos são detidos por dirigentes considerados pelos analistas como próximos de Hu: o secretário do Partido Wang Yang, o governador Huang Hua Hua e o secretário do PCC no município de Shenzhen – todos trabalharam com o presidente da RPC na década de 80 na LJCC. Esta nova realidade é relevante no denso universo do balanço de poderes dentro do PCC uma vez que a base de apoio de Hu no início do seu mandato, em 2002, centrava-se sobretudo nas regiões do centro e oeste da China, dado que as zonas costeiras continuaram sob influência de quadros considerados próximos de Jiang Zemin durante alguns anos. No caso de Guangdong, com as recentes remodelações, dez dos dezoito dirigentes de topo da província pertencem à facção dos tuanpai.

“Emancipar o pensamento”

A postura de Wang difere do temperamento típico dos dirigentes chineses. Numa recente reunião do Politburo provincial lançou um feroz ataque às vistas curtas de muitos agentes políticos económicos de Guangdong que apenas pensam em promover o crescimento da economia sem cuidar das dimensões culturais, sociais políticas e ambientais do desenvolvimento.
Ao nível político alguns analistas procuram deslindar se a “emancipação do pensamento” incluirá algum tipo de inovação no sistema de tomada de decisão (governance). A expressão foi usada pela primeira vez por Deng Xiaoping há 30 anos quando pediu aos quadros do PCC para se libertarem dos dogmas do Maoísmo e abraçarem as reformas e abertura à economia de mercado. Agora Wang defende que o principal desafio de Guangdong já não é o crescimento económico “per se”, mas o desenvolvimento político. Cheng Li, o académico chinês, residente nos EUA há vários anos – e coordenador do livro recém-lançado “China's Changing Political Landscape: Prospects for Democracy” – pergunta se “Guangdong, que anteriormente foi uma zona experimental para as reformas económicas, se tornará num palco para as reformas políticas no país”. Os mais optimistas lembram que a proximidade com Hong Kong, onde poderá ser introduzido o sufrágio universal em 2017, é um factor importante no caminho que terá de ser trilhado na província vizinha, onde, de resto, decorrem desde os anos 1980 eleições directas para a liderança de comités de aldeias (village commitees). Em Fevereiro, num fórum para jovens que decorreu em Cantão, Yu Keping, académico autor do famoso artigo de opinião “Democracy is a good thing” foi explícito: “só com garantias democráticas e institucionais é que é possível emancipar o pensamento”. O teste é o encontro com a realidade e não as declarações e os termos pomposos que proliferam no discurso oficial. Ou seja, os actos e não as palavras vão mostrar se esta “entrada de leão” se consubstancia. Na véspera do Ano Novo Chinês, Wang Yang e o governador Huang Hua Hua fizeram circular uma carta na internet em que são pedidas críticas e sugestões aos “net-cidadãos” para que as medidas tomadas possam ir mais ao encontro das necessidades da população. O desafio é transformar esta “boa vontade” em novos mecanismos de auscultação e em que as os cidadãos possam fazer parte do processo de tomada de decisões. Um outro teste será a forma como Wang vai lidar com a liberdade de imprensa. O consulado seu antecessor ficou marcado pela prisão de vários jornalistas, o mais conhecido dos quais o director adjunto do jornal Southern Metropolis, Yu Huafeng, acusado de corrupção e condenado a uma pena de oito anos de cadeia. Por coincidência – ou provavelmente não – em Fevereiro deste ano (pouco depois de Wang ter chegado a Guangdong) o jornalista foi libertado quando apenas tinha cumprido quatro anos da pena.

O desafio Guangdong/Macau/Hong Kong

Se em termos políticos as palavras de Wang dão azo a uma boa dose de ambiguidade, o desafio económico lançado é mais claro: a criação de uma megapólis Hong Kong/Macau/ Zhuhai/Shenzhen/Cantão capaz de rivalizar com Nova Iorque ou Tóquio. O nivelamento por cima foi também evidente quando Wang exortou Shenzhen a ombrear com Singapura. Para a província, o plano anunciado implica uma transformação de uma economia ainda baseada em indústrias de mão-de-obra intensiva num centro mundial de indústrias de capital intensivo e de serviços. Em definitivo Wang ambiciona dar início à Terceira Vaga de modernização económica do Sul da China depois da abertura das zonas económicas especiais no início dos anos 1980 e da “tour” de Deng Xiaoping em 1992. Sendo explícito o desafio, a grande questão é como é que estes objectivos podem ser colocados em prática. De acordo com o jornal pró-Pequim de Hong Kong Wen Wei Po, 23 departamentos e institutos estão envolvidos na elaboração de um estudo de viabilidade da criação de uma zona económica especial de cooperação Hong kong/Macau/Guangdong, que implique a circulação livre de pessoas, bens, mercadorias e capitais. Os desafios são imensos, uma vez que será necessário esbater as disparidades entre três sistemas económicos distintos, num processo que colocará várias questões e desafios ao princípio e à prática “Um País, Dois Sistemas”.

China e Japão: Rumo a um novo equilíbrio

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 15/05/2008

José Carlos Matias


“O renascimento da Ásia não pode acontecer sem a cooperação entre a China e o Japão”
Hu Jintao, durante a visita ao Japão, em 8 de Abril de 2008


No Outono da sua vida, o imperador unificador da China, Qin Shi Huang, terá enviado uma delegação ao Monte Penglai, numa ilha imaginária localizada a leste do Mar de Bohai. A missão era encontrar o “elixir da imortalidade”. As centenas de homens e mulheres acabaram por nunca voltar. Terão acabado por ficar numa ilha no arquipélago do Japão. Menos ambicioso, Hu Jintao esteve este mês no Japão apenas à procura de uma “Primavera Quente”. A visita ficou marcada pelos golpes de charme da diplomacia de Pequim. Começou com a entrega (empréstimo) de um par de pandas ao Jardim Zoológico de Tóquio, em substituição de um velho panda (o único) mui querido pelos japoneses que faleceu, e terminou com uma visita em Nara, antiga capital nipónica, onde esteve em Toshodaiji, no templo “construído” pelo monge chinês Ganjin, que viajou para o Japão a convite das autoridades japonesas, no século VIII. Pelo meio, foi emitida uma declaração conjunta em que as duas partes se comprometeram a tecer uma parceria estratégica de benefício mútuo para o século XXI. Os dois líderes – o Presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro japonês Yasuo Fukuda – concordaram em dar início a um novo quadro de diálogo institucional com cimeiras de chefes de estado e governo anuais, conversações sobre questões comerciais e económicas e aumento do intercâmbio de jovens. À primeira vista, a visita de Hu foi um sucesso inegável. Mas na realidade há um caminho longo a percorrer. A intenção proclamada em epígrafe encaixa na perfeição num mundo em que reine a Paz e o Desenvolvimento (utilizando a linguagem Denguista), mas nas relações internacionais as equações do interesse nacional e do dilema securitário são constantes.

Da “amizade” à percepção de ameaça

A visita de Hu Jintao revestiu-se de uma carga simbólica a vários níveis. Não só foi a primeira de um chefe de estado chinês ao Japão em dez anos – depois de Jiang Zemin em 1998 - como surgiu numa altura em que as duas partes comemoram os 30 anos sobre a assinatura do Tratado de Paz e Amizade. Ao longo dos anos 1980, as relações foram marcadas por um registo cordial em que as duas partes evitaram fazer referências ao passado – ou seja à ocupação japonesa. Nessa altura em Tóquio vigorava uma geração de líderes que defendia uma abordagem “amigável” com o vizinho. A repressão violenta sobre os estudantes na Praça de Tiananmen despoletou uma nova fase. O Japão criticou duramente a liderança chinesa, ao passo que em Pequim, à falta da raison d’être da construção da sociedade socialista, as garras do nacionalismo chinês cresceram tendo como alvo país vizinho, sobre o qual paira a memória colectiva da invasão e de atrocidades como o Massacre de Nanjing. A retórica da China humilhada foi reforçada num sistema educativo cada vez mais “patriótico”. Do outro lado – numa cadência acção-reacção – altas figuras do estado japonês, como o ex primeiro-ministro Junichiro Koizumi, visitavam o Templo de Yasukuni para prestar homenagem a soldados do exército imperial autores de crimes de guerra.
Em 2006, Shinzo Abe quebrou o gelo com uma visita oficial – a primeira depois de ser empossado primeiro-ministro japonês – a Pequim. No ano passado, Wen Jaibao retribuiu com uma deslocação à capital nipónica.

Japão: entre “civilistas e normalistas”

Como pano de fundo para o relacionamento do Japão com a China está a própria identidade do estado-nação nipónico. Que caminho seguir? Continuar a ser uma nação sobretudo civilista ou rumar rapidamente ao uma “normalização” militar colocando um ponto final à natureza pacifista da constituição pós-II Guerra.
A primeira tendência acredita que o país deve continuar a ter uma natureza de poder civil, ou seja, uma potência económica capaz de ter maior participação nas missões de paz da ONU e na promoção dos direitos humanos, mas nunca de uma forma agressiva. Nesse sentido, um relacionamento amigável com Pequim é positivo na medida em que com a interdependência económica pode advir uma abertura do regime chinês.
Os “normalistas” argumentam que não faz sentido que o Japão seja uma excepção na “anarquia” do sistema internacional, necessitando por isso de se equipar e modernizar militarmente. Ou seja, o Japão deve ser um país “normal” com uma estratégia cimentada numa aliança militar com os EUA, mas com capacidade de defesa autónoma – ser na Ásia Oriental o que o Reino Unido é para Washington na Europa. A China será, nesse sentido, um competidor estratégico do EUA, e uma ameaça ao Japão. Por isso será um país a “conter”. A China, por seu lado, olha para a presença militar norte-americana no Japão de uma forma ambígua: por um lado constitui parte do “encirclement” dos EUA à China; por outro tem prevenido o Japão de ter necessidade de ressurgir como potência militar na região.

Virtudes e limites da inter-dependência

Na economia, os dois vizinhos estão cada vez mais inter-dependentes. Em 2007, a China, incluindo Hong Kong, tornou-se no principal parceiro comercial do Japão, ultrapassando os Estados Unidos; no mesmo ano, o Investimento Directo externo (IDE) japonês acumulado na RPC ascendeu a 60 mil milhões de dólares. Em Tóquio é cada vez mais evidente que a dinâmica japonesa depende do crescimento económico da China. Em declarações à agência Reuters, Koichi Nakano, professor na Tokyo Sophia University, reconhece que “o Japão olha para a China como um parceiro económico muito importante, mas ao mesmo tempo encara com inquietude a possibilidade da RPC destronar o país como a maior potência económica na região”.
Uma questão que tem ocupado a mente de vários analistas é a razão pela qual a interacção económica entre os dois países não tem contribuído para um terreno mais firme ao nível das relações sociais, intelectuais e de segurança comum. Michael Yahuda argumenta que não há confiança nem empatia entre as sociedades civis dos dois lados para dar seguimento à realidade de duas economias que têm beneficiado bastante com a inter-dependência. Isso acontece porque, ocasionalmente, líderes e “fazedores de opiniões” dos dois lados sucumbem facilmente a discursos que envenenam um relacionamento que em concreto tem registado economicamente grandes avanços.

Onde está o elixir?

A cimeira da “Primavera Quente” e as visitas de Shinzo Abe e Wen Jiabao têm mostrado um lado conciliador das lideranças dos dois lados, mas como refere Huang Dahui, especialista em assuntos nipónico da universidade de Remin em Pequim, “as relações oficias estão calorosas, mas na verdade, o maior obstáculo são as populações dos dois países que se olham com desconfiança mútua”. Os problemas históricos e estruturais persistem: a soberania sobre as ilhas Diaoyu, os laços de Tóquio com Taipé, o legado histórico da ocupação japonesa, as disputas sobre a zona económicas exclusivas ou a ambição do Japão de fazer parte como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Mas o que condiciona a resolução negociada destes interesses contraditórios é a percepção estereotipada e a desconfiança. Nesta visita, Hu e Fukuda abriram uma porta que pode vir a revelar-se fundamental para evitar um retrocesso: o início de uma nova era de cimeiras anuais e novos mecanismos de diálogo de alto nível. Essa poderá ser a via rumo a um novo equilíbrio. Não será, no entanto, um elixir da imortalidade (Paz Perpétua).

Nacionalismo com características chinesas

Texto Publicado no Jornal Hoje Macau em 02-05-2008.

José Carlos Matias

As recentes manifestações de chineses, dentro da República Popular da China (RPC) e no exterior, por onde passou a tocha olímpica, trouxeram à tona de novo a questão do sentimento nacionalista do país que vai acolher em Agosto a maior festa do desporto mundial. Num olhar imediato e superficial somos tentados a concluir que as manifestações são fruto da forma como os media na RPC filtram a informação que tem chegado ao país dos protestos contra a passagem da chama em várias cidades, na maioria com manifestantes a defenderem a causa do governo tibetano no exílio. Contudo essa observação em si – não sendo incorrecta - deixa muito por explicar. Vale a pena começar por olhar para os protestos contra a França e em defesa do boicote da cadeia de supermercados Carrefour no contexto de uma série de erupções nacionalistas que sucederam ao longo dos últimos dez anos.

Belgrado, o avião-espião e os manuais japoneses

Em 1999, na operação militar na Sérvia e no Kosovo, a NATO bombardeou, aparentemente por engano, a embaixada chinesa em Belgrado, provocando a morte a três cidadãos chineses. A aliança atlântica pediu desculpas explicando que estava a utilizar um mapa desactualizado quando foi efectuado o ataque, mas muitos chineses não aceitaram esta justificação. Ao longo de vários dias milhares de chineses protestaram de forma agressiva junto à Embaixada dos Estados Unidos em Pequim e em frente de edifícios consulares norte-americanos em várias cidades na China, como forma de expressar a ira face a um acto que consideravam deliberado. As autoridades chinesas toleraram esta onda anti-americana, num gesto que foi visto por alguns analistas como a prova de que o Partido Comunista Chinês (PCC) estava a estimular o sentimento nacionalista entre a população, especialmente os jovens. Muitos manifestantes pediram ao governo central que tivesse uma atitude mais dura para com Washington.

Dois anos depois, as pulsões anti-EUA subiram de novo de tom, na sequência da colisão entre um avião-espião de reconhecimento dos EUA e um caça que chinês. O aparelho norte-americano não estava em águas territoriais chinesas, mas já estava a sobrevoar a Zona económica exclusiva da RPC, pelo que Pequim reagiu de forma enérgica ao incidente. À margem do debate legal sobre se os EUA tinham o direito de utilizar um avião-espião a 80 milhas da costa chinesa, vários protestos eclodiram de novo com milhares de chineses a insurgirem-se nas ruas contra o “imperialismo americano.

Em 2005, o alvo da onda nacionalista foi o Japão, a propósito dos manuais escolares de História nipónicos em que vários crimes de guerra praticados pelo exército imperial japonês durante a ocupação da China são omitidos. De novo o povo saiu à rua. Ao longo dos últimos anos, especialmente nos protestos anti-Japão de 2005 e anti-França nas últimas semanas, as novas tecnologias – internet e Sms – desempenharam um papel muito importante. Esta situação coloca desde logo em causa se os protestos foram orquestrados pelo PCC ou se nasceram de movimentos espontâneos populares, tendo sido – facto consumado – tolerados pelo partido que, numa lógica ainda leninista, procura controlar os movimentos populares e ser a vanguarda dos movimentos de massas.

Um nacionalismo além-PCC

Peter Gries, académico norte-americano e autor de vários artigos e livros sobre o nacionalismo chinês, argumenta que “o PCC está a perder o controlo sobre o discurso nacionalista”, uma vez que o neo-nacionalismo que brotou nos anos 1990 tem um cariz popular forte que pode em última instância ser utilizado para colocar em causa o monopólio do poder detido pelo PCC. Gries assegura que “com a emergência da internet, telemóveis e mensagens de texto SMS, os nacionalistas populares na China estão paulatinamente a ser capazes de agir independentemente do estado”. Claro que as malhas da censura procuram manter a situação sobre controlo, contudo é difícil ao governo central impedir manifestações de nacionalismo e patriotismo (aiguo zhuyi), uma vez existe na “alma chinesa” uma narrativa latente dos 150 anos de humilhação e de vitimização que funciona como um gatilho para estas manifestações sempre que regressa a percepção de que o mundo - normalmente o Ocidente personificados pelos EUA – quer impedir a re-emergência da China como potência económica, comercial e eventualmente militar. Naturalmente que o PCC utiliza e manipula estes sentimentos populares ao inculcar no sistema educativo um patriotismo exacerbado e ao promover alguns destes protestos através de organizações para-partidárias.

Uma espada de dois gumes

Contudo, o PCC saberá certamente que este é um jogo muito perigoso. Na verdade é uma faca de dois gumes. Por um lado, o nacionalismo é conveniente ao PCC especialmente após o descrédito do comunismo enquanto ideologia e depois dos protestos de Tiananmen em 1989. Quer isto dizer que o nacionalismo serve como factor de legitimação de um Partido único que procura refazer o léxico e a semântica do socialismo com características chinesas. No entanto este nacionalismo nem é provavelmente o principal factor de legitimação nem o nacionalismo chinês é análogo ao que na Europa brotou no século XIX, tendo chegado ao poder na sua forma mais reaccionária no século XX. Ren Bingqiang, professor na Universidade de Pequim, defende que uma diferença essencial entre os nacionalismo chinês e ocidental é que e”o nacionalismo no Ocidente cresceu durante as revoluções liberais, aquando da criação dos estados-nação, ao passo que o nacionalismo chinês emergiu como resposta à invasão estrangeira”. Na verdade, o primeiro movimento de massas nacionalista – no sentido moderno – surgiu na altura da chamada Revolução dos Boxers contra a influência ocidental, no limiar do século XX, quando a China Qing era presa fácil para o imperialismo do Ocidente. O complexo de vitimização está latente também porque é explorado pelo PCC em situações de crise. Em todos os casos referidos aqui de erupções populares de nacionalismo – bombardeamento da embaixada chinesa em Belgrado, incidente com o avião espião dos EUA, manuais escolares japoneses e protestos anti-França por causa das posições de Sarkozy de apoio à causa tibetana e das acções violentas contra a chama olímpica em Paris – as manifestações nacionalistas surgiram como reacção a uma percepção de humilhação por parte de países ocidentais ou aliados do Ocidente (como é o caso do Japão).

A proliferação de “China bashers” nos “media” ocidentais, como o ignóbil Jack Cafferty, comentador residente da CNN que chamou de “rufias” aos líderes chineses e classificou de “lixo” os produtos fabricados na China, ajuda ao recrudescimento do nacionalismo chinês mais rasteiro. A tese da “China como ameaça” pode transformar-se numa “self-fulfilling prophecy”. Não se trata de fazer auto-censura face ao que tem que ser dito sobre os atropelos aos direitos humanos na China, seja no Tibete, em Pequim ou Urumqi. Trata-se sim de, ao nível oficial e em declarações públicas, ter uma dose de responsabilidade e de entendimento sobre a história recente da RPC. Na edição de 21 de Abril da revista Newsweek, Fareed Zakaria, num habitual acesso de lucidez, explicou por que é que é importante não alimentar o nacionalismo na China e por que é que a humilhação pública funciona muito pior no regime de Pequim do que a pressão privada (pelos canais diplomáticos apropriados).

Entretanto, vale a pena continuar a acompanhar as pulsões nacionalistas na China, uma vez que tudo indica que seja um movimento com raízes populares, que escapa ao controlo total do PCC e que, por isso, pode transbordar para outras causas que se possam virar contra o governo. Esse é o grande receio em Zhongnanhai (sede do PCC em Pequim). É que as manifestações de fervor patriótico têm sido raros momentos (autorizados pelo regime) de expressão em massa nas ruas de uma sociedade civil provavelmente ansiosa por se fazer ouvir fora dos mecanismos rígidos das estruturas do PCC e do estado.

De Wu para Liu: Em busca da outra metade do céu

José Carlos Matias

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 03-04-2008


Na China, o poder escreve-se sobretudo no masculino. Desde 1949 nenhuma mulher ascendeu ao topo da liderança do Partido Comunista Chinês (PCC), ou seja ao Comité Permanente do Politburo (CPP). No XVII Congresso apenas uma mulher tem assento no Politburo alargado (25 membros), ao passo que nas funções de topo (primeiro-ministro, vice primeiros ministros e conselheiros de estrado) do governo liderado por Wen Jiabao, que foi eleito na última sessão plenário da Assembleia Popular Nacional (APN), também apenas figura essa mesma mulher, Liu Yandong, que ocupa o cargo de Conselheira de Estado. Entre os 25 dirigentes com o estatuto de ministro, apenas três são ministras. No Comité Central do PCC, órgão que integra 204 dirigentes apenas estão 13 mulheres, ou seja 6.3 por cento desse organismo, um valor proporcionalmente bastante inferior ao universo de filiados no PCC: 22.6 por cento dos membros do Partido são mulheres. Proporções que não condizem com o famoso dito de Mao – As mulheres detém metade do céu”.

O que explica este afastamento de mulheres do topo da liderança na República Popular da China (RPC)? Christina Gilmartin, académica norte-americana especialista em estudos sobre a mulher na China moderna, lembra que antes da ascensão de Wu Yi, apenas três mulheres tiveram assento no Poliburo, todas elas esposas de dirigentes de topo, incluindo a malograda Jiang Qing, quarta esposa de Mao Zedong e figura de proa do “Bando dos Quatro”. Para Gilmartin durante vários anos “as actividades de Jiang Qing surgira aos olhos de muitos chineses como a prova de que as mulheres não devem estar envolvidas ao mais alto nível na política chinesa”. Uma crença com raízes na forma como exerceram o poder a Imperatriz viúva Cixi, no século XIX, ou a famosa Wu Zetian, que, no século VII, assumiu o cargo de Imperador, rompendo com a dinastia Tang e iniciando a brevíssima (Segunda) Dinastia Zhou (embora vários historiadores sublinhem os aspectos benignos da sua governação).

A herança patriarcal

Existem, claro, outros motivos de cariz estrutural e cultural. Numa análise mais ampla, sobre a emancipação da mulher na China, Jinghao Zhou argumenta que na RPC as mulheres nunca serão verdadeiramente livres e emancipadas enquanto não tiverem espaço para se organizarem fora do controlo do Partido, que escolhe a liderança da Federação das Mulheres da China – ACWF na sigla em inglês - maior organização feminina do país, de onde saem quadros dirigentes para o PCC e para o Governo Central.

Admitindo que um sistema mais democrático traria uma maior e melhor representatividade da sociedade nas esferas de poder, isso não iria “per se” ser a panaceia para as desigualdades de género que existem na China, como comprovam vários exemplos de democracias de tipo ocidental. A herança de séculos de feudalismo patriarcal e de uma sociedade que tradicionalmente afastou as mulheres da esfera pública ajuda a explicar a situação. Essa situação é denunciada por Mu Hong da ACWF, para quem “em várias áreas, as pessoas ainda estão afectadas por uma mentalidade feudal”.

No livro recém-lançado – e altamente recomendável – “A Mulher na China”, Ana Cristina Alves salienta que embora a criação da RPC em 1949 tenha contribuído significativamente para a melhoria da situação da mulher no país, foi a partir de Deng Xiaoping que passou a haver um esforço por materializar os dispositivos legais que promovem o papel da mulher na sociedade. No entanto, nota a académica, “desde que passaram a assumir o estatuto de forças produtivas válidas, as mulheres confrontaram-se com inúmeros obstáculos externos, fruto de um sistema tradicionalmente patriarcal” (p.170).

A diferença de Wu

A nova geração de dirigentes chineses – mais aberta e cosmopolita – e o exemplo da força e capacidade de Wu Yi na actividade pública que exerceu podem ter dado início a um processo de mudança gradual. Aos 69 anos, a ex vice primeira-ministra abandona uma vida política que começou em 1962 quando se inscreveu no PCC. Já na década de 1980 assumiu a chefia da célula do Partido na Companhia Petrolífera Yanshan. Aliás, esta mulher natural da província de Hubei podia ter ficado conhecida como “Oil Lady”, uma vez que trabalhou no sector petrolífero durante 25 anos. Esse percurso foi alterado em 1988 quando ascendeu a vice-presidente da Câmara de Pequim. Nos anos 1990 destacou-se como Ministra do Comércio Externo e da Cooperação Económica Em 2002 e 2003 assumiu um dos cargos de vice primeiro-ministro do Conselho de Estado e entrou para o Politburo do PCC. Em Abril de 2003 assume o controlo da pasta da saúde, por acumulação, na sequência da demissão de Zhang Wenkang na altura do surto da Síndroma Respiratória Aguda. Sem experiência na área da saúde, conseguiu impor novas regras de transparência no campo das doenças infecto-contagiosas e melhorar a imagem da China no plano internacional. Anos antes, quando era vice-ministra do Comércio Externo substituiu, dois dias antes das negociações, o chefe da delegação chinesa nas conversações com os estados unidos sobre os Direitos de Propriedade Intelectual. A forma como conduziu as negociações impressionou a liderança chinesa, tendo sido desde então – 1991 – passou a ser uma presença habitual nas negociações sino-americanas sobre a entrada na Organização Mundial de Comércio e disputas comerciais. “É uma força da natureza”, confessou Henry Paulson, secretário de estado norte-americano do tesouro. É um a “Dama de Ferro” da China, escreveu a imprensa ocidental. Ela preferia que a chamassem de “little woman”, uma mulher que nunca escondeu os seus cabelos brancos, ao contrário dos seus correligionários sexagenários do Politburo. Até na forma como se despediu da política foi diferente. Quebrando a regra entre os dirigentes de topo chineses de não anunciarem a sua saída antes do anúncio oficial dos novos detentores dos cargos, Wu Yi, que foi em 2005 considerada pela revista Forbes como a segunda mulher mais poderosa do mundo, falou publicamente sobre a sua saída da de todos os cargos que ocupava num discurso numa conferência Câmara de Comércio Internacional da China., adiantando que não vai ter qualquer actividade política na reforma. Na mesma ocasião disse “quando eu sair por favor esqueçam-se completamente de mim”. Uma mensagem (de) cifrada que ilustra a forma como esteve na vida pública.

A senhora Liu

Liu Yandong surge agora como sucessora de Wu como a mulher com o cargo mais elevado no Partido e no estado. Contudo, a APN não a elevou a vice-primeira ministra, optando por conduzi-la ao posto de Conselheira de Estado. A sua personalidade difere da de Wu em vários aspectos. Em vez “Iron Lady”, é mais encarada como “soft lady”, pela forma mais diplomática como exerce a actividade política. O seu percurso está ligado à facção dos quadros que começaram por fazer carreira na liga da Juventude Comunista, grupo ligado ao presidente Hu Jintao – que liderou a LJC nos anos 1980 – e do qual fazem parte Li Keqiang, vice. Primeiro-ministro, e Li Yuanchao, ambos também vistos pelos analistas como “protegés” de Hu. Entre 2002 e 2007 liderou a Frente Unida, entidade do PCC responsável pela conjugação de esforços com os restantes oito partidos autorizados na RPC.

A sua figura agrada bastante aos deputados de Macau e Hong Kong, membros da Conferência Consultiva Política do povo Chinês, órgão de que foi vice-presidente, uma imagem a que não estranho o facto de entender cantonense e ter reputação de competente e trabalçhadora.

Nos últimos anos, uma das suas missões foi alargar a base de apoio do PCC a Macau, Hong Kon e Taiwan. A elite das regiões administrativas especiais teve certamente ao longo dos últimos anos oportunidade para cultivar os laços com Liu. Uma atitude a vários níveis útil e inteligente – é que quer no governo central, enquanto conselheira de estado, quer no PCC, como braço direito de Xi Jinping, tem em mãos a pasta de Macau e Hong Kong.

Um novo ciclo em Taipé

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 20-03-2008.

Independentemente de quem vencer as eleições presidenciais em Taiwan no próximo sábado, será aberta uma nova página na história política da ilha a que os portugueses chamaram de Formosa. A estratégia de Chen Shui-bian, na presidência nos últimos oito anos, de provocação, deverá ter um fim, mesmo que vença o candidato menos cotado nas sondagens, Frank Hsieh do Partido Democrático Progressista (PDP), força política de Chen. Esse novo ciclo deverá alterar a relação de Taiwan com a China continental e terá efeitos no papel que Macau e Hong Kong têm desempenhado no tráfego de passageiros e de mercadorias.

A vantagem que o candidato do Kuomintang (KMT), Ma Ying-jeou, tem nos estudos de opinião e sondagens reflecte uma saturação por parte dos taiwaneses com o os escândalos de corrupção dos últimos governos e o estilo agressivo e populista de Chen, que, ao optar pela confrontação com Pequim, alienou as vantagens que Taiwan poderia ter colhido com um reforço das relações económicas com o continente. Ao passo que a maioria dos países mal pode esperar pela oportunidade de beneficiar com o crescimento da China, Taiwan tem sido uma excepção. As dificuldades económicas por que passa Taiwan ditaram a mudança no discurso do PDP e a vantagem do KMT, que em Janeiro assegurou a maioria absoluta nas eleições para o parlamento (lifa yuan).

A economia, acima de tudo

Na verdade, Ma e Hsieh partilham a perspectiva de que é importante colocar em prática políticas amigas do investimento e comércio com a China. A diferença está no tom, nas prioridades e na velocidade da aproximação. Ma Ying-jeou, ex presidente da Câmara de Taipé, tem uma agenda ambiciosa que passa pela criação de um mercado comum no Estreito de Taiwan com livre movimento de capitais e bens, mas não de pessoas. O início desse processo, propõe Ma, será a abertura imediata das ligações directas aéreas, começando com voos charter aos fins-de-semana, para, dentro de um ano, terem início os voos directos regulares com a China continental. O candidato do KMT prometeu abrir Taiwan ao investimento continental em sectores como o imobiliário, à entrada de turistas chineses e ao reconhecimento dos diplomas universitários da China continental. Após um coro de críticas de Hsieh sobre o perigo de uma bolha especulativa no imobiliário com a entrada de investidores chineses, e da perda de empregos, com a mudança de unidades de produção para a China, Ma corrigiu o discurso garantindo que Taiwan não abrirá as portas a produtos agrícolas do continente, à entrada de trabalhadores do outro lado do estreito e aos produtos de má qualidade fabricados na China. Para não afastar o eleitorado do centro e com o objectivo de captar algum eleitorado moderado que tem votado no PDP, Ma inseriu no seu discurso os três nãos: não às conversações sobre a reunificação, não à declaração de independência e não ao uso da força por qualquer um dos lados. Hsieh é mais cauteloso face à aproximação económica com a China, temendo efeitos nefastos, explorando esse receio como arma eleitoral contra Ma. Mas o candidato do PDP, ex primeiro-ministro, também promete criar um enquadramento mais propenso aos investimentos de empresários de Taiwan na China e vice-versa. Hsieh defendeu na campanha ainda a abertura seleccionada de voos charter directos entre os dois lados do estreito e a abertura ao investimento de empresas chinesas na construção de edifícios comerciais e de serviços, mas rejeitando a entrada no sector residencial.

Ainda a questão da identidade

À primeira vista as eleições poderiam ser resumidas à famosa máxima “Its the economy, stupid”, que valeu a vitória a Bill Clinton sobre George H. Bush em 1992. Essa é a linha de argumentação do Kuomintang, mas Hsieh, mesmo distanciando-se do radicalismo pró-independência de Chen Shui-bian, salienta que as questões ligadas à segurança nacional e à identidade de Taiwan ainda prevalecem. Prova disso é a questão do referendo proposto por Chen Shui-bian sobre a entrada da ilha nas Nações Unidas sob a designação de Taiwan, uma consulta popular que será realizada em simultâneo com as eleições presidenciais e um outro referendo da autoria do KMT em que é proposta a participação de Taiwan de forma flexível em organizações internacionais. As duas consultas não deverão ser vinculativas, ou seja não deverão ter mais de 50 por cento de participação eleitoral.

Se em, termos económicos existem semelhanças nos programas dos dois candidatos, a perspectiva face à questão da identidade de Taiwan permanece bastante diferente. Para Hsieh a República da China já foi “taiwanizada”, daí que Taiwan seja a República da China e vice-versa. Isto é, ter a nacionalidade da República da China significa ter uma identidade taiwanesa, daí que o futuro da ilha só possa ser decidido pelos 23 milhões de habitantes. Já Ma considera que apenas a República da China é detentora da soberania e não Taiwan, ou seja, a sua perspectiva radica ainda na questão histórica, do legado da guerra civil entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang. Em todo o caso, a posição de Ma acaba por ser dúbia, sendo pressionado por um lado pela velha guarda nacionalista do KMT e, por outro, pela necessidade de conquistar o eleitorado moderado. Daí que, apesar de defender um desanuviamento do clima nas relações com Pequim e de propor um programa económico ambicioso, Ma Ying-jeou seja mais cauteloso que Lien Chan, candidato presidencial em 2004 que, em 2005, efectuou uma visita histórica à China, garantindo que, durante o seu mandato, não irá ter encontros com Hu Jintao ou iniciar conversações rumo à reunificação. A estratégia de Ma passa por não aparecer aos olhos do eleitorado como o candidato de Pequim, uma vez que a sociedade de Taiwan continua muito dividida face à questão das relações políticas com a China. É por isso que esta semana criticou o que considera ser a “arrogância” de Wen Jiabao sobre a questão de Taiwan e deu a entender que, se a China continuar a reprimir os protestos de tibetanos, a ilha poderá boicotar os Jogos Olímpicos.

À espera do efeito “spill over”

Uma aproximação económica poderá levar inevitavelmente no médio ou longo prazo a uma relação política que rompa com o permanente “deadlock” do status quo. Numa perspectiva neo-funcionalista, a crescente interdependência económica e comercial levará à institucionalização de laços políticos, num efeito de “spillover”, à semelhança do que sucedeu como a integração europeia nos últimos 50 anos (salvaguardando as devidas diferenças). O problema diz respeito à forma como ser irá materializar essa institucionalização e qual será base mínima para o diálogo. Ao que tudo indica, Ma defende que a base de negociação deverá ser o chamado “consenso de 1992”, sobre o princípio de uma China, decorrente do diálogo que teve lugar em Hong Kong entre a Associação para as relações no estreito de Taiwan, entidade da China continental, e a Fundação Para o Intercâmbio no Estreito, instituição de Taiwan. No entanto, a visão de uma China suscita interpretações diferentes dos dois lados do Estreito. Além disso, podendo esse ser o ponto de partida será difícil e moroso o processo de “encaixe” de Taiwan no Princípio Um País, Dois Sistemas. Começar por criar um mecanismo de diálogo com vista à paz e segurança regional, no estreito, seria um primeiro passo que fortaleceria a confiança mútua. Mas neste longo caminho há sempre que contar com a posição de Washington, que certamente receia perder terreno como potência militar regional a favor de uma Pax Sínica.

Da Reforma e da Transição

Texto Publicado no jornal Hoje Macau no dia 6 de Março de 2008

“Sem reforma há apenas um caminho - para a perdição”
Deng Xiaoping, em 1992, durante o “tour” pelo sul da China para promoção das reformas económicas

As reformas económicas (gaige kaifang) introduzidas há 30 anos por Deng Xiaoping têm guiado a República Popular da China num período de ritmo de crescimento sem precedentes na História. Ao contrário do que sucedeu na União Soviética nos anos 1980, as reformas na China não foram acompanhadas por uma diminuição do cariz “leninista” do Partido Comunista na gestão e comando do rumo das reformas económicas e no monopólio do poder político. Alguns autores consideram que parte do segredo da China foi não cometer os mesmos erros de Gorbatchov, não só em termos de eficiência da reestruturação económica (perestroika) mas sobretudo na questão da abertura do regime rumo a uma partilha de poder, que no caso soviético, devido a vários factores, resultou no colapso do sistema. Paralelamente a esta observação surge uma outra perspectiva que alerta para os perigos da ausência de uma abertura política para o próprio crescimento sustentado e saudável da economia no futuro. Subjacente a este debate sobre que melhores receitas reformistas servirão a RPC estão visões diferentes, ou mesmo opostas, sobre a evolução do “socialismo de mercado com características chinesas”, numa lógica de transição. Daí que, naturalmente, as reformas de hoje estejam indelevelmente ligadas às transições de amanhã.

A reforma administrativa

A reforma está no topo da agenda da sessão anual da Assembleia Nacional Popular (ANP), que teve início esta quarta-feira. A reforma administrativa foi erguida pelo primeiro-ministro como prioridade de modo a que o governo central aumente a sua eficiência e possa responder melhor e de forma mais ágil às necessidades do povo - instituições que melhor respondam às necessidades da população são per se factor de legitimidade. A criação de quatro Super Ministérios que centralizem as pastas da energia, indústria, transportes e ambiente deve ser entendida como, segundo Mao Shoulong da Universidade Renmin de Pequim, uma forma de adequar o processo de tomada de decisões a normas internacionais e visam criar um sistema que separa a dimensão executiva das decisões tomadas numa determinada área das actividades das agências regulatórias. O caderno de encargos desta sessão da ANP reflecte o movimento de reforço do poder de Hu Jintao e Wen Jiabao na estrutura do Partido e, em consequência, do Estado. A agenda da reforma administrativa tinha sido desde logo colocada em cima da mesa por Hu em 2002, quando assumiu a liderança do PCC, altura em que iniciou a promoção da “civilização política” (zhengzhi wenming), ou seja reformas e alterações do sistema administrativo e político com vista à melhoria da eficiência de um processo de tomada de decisões “científico”.

“Rule by law”

Neste processo, a promoção do Estado de Direito desempenha um papel muito importante. Contudo, não estamos perante uma promoção do Estado de Direito (rule of law) da separação do poder ou a criação de um regime de pesos e contrapesos. Há, de facto, uma defesa do primado da Lei, mas, seguindo a análise de Willy Lam, a lógica é “rule by law”. Quanto a isto Wen Jiabao deixou claro, em 2004, numa resposta a um jornalista, que “o Partido lidera o povo na formulação da Constituição”. Em todo o caso, nos últimos anos, são visíveis sinais interessantes como o aumento exponencial das litigações e a subida do número de cidadãos que processam os governos locais – o fenómeno de minggaoguan.Paralelamente, têm sido movidas campanhas de combate à corrupção, de criação de mecanismos de responsabilização dos detentores de cargos públicos (accountability) e de disponibilização de mais informações sobre as actividades de cada unidade do Governo Central e das dos governos locais.

Transições: duas visões americanas

Apesar deste esforço e do aparente vigor com que a liderança lida com os problemas de eficiência burocrática e administrativa, subsistem ainda demasiados casos de directivas governamentais não cumpridas. O académico chinês Mixin Pei, residente nos Estados Unidos e investigador do Carnegie Endowment , considera que apesar do estado chinês parecer ser centralizado e omnipresente, “a sua capacidade para implementar as políticas e garantir o cumprimento das directivas é bastante limitada pela sua incoerência, tensões internas e fraquezas várias”. Numa visão pessimista, Pei traça um retrato quasi-catastrófico do aparelho estatal, especialmente a nível local, onde, argumenta, a corrupção é endémica. Para Pei a China está a gerar “estados-mafia” a nível provincial que fogem quase por completo à cadeia de comando de Pequim e que funcionam à margem do incipiente estado de direito chinês. A transição está armadilhada porque o estado se torna num predador; em vez de cumprir o seu papel de alguma redistribuição da riqueza e de modernização da economia, no verdadeiro sentido, ou seja em termos de inovação e competitividade além do factor da mão-de-obra extensiva. Ou seja, este autor não acredita no argumento segundo o qual em regimes autoritários a abertura à economia de mercado gera forças que pressionam as elites a acelerar as reformas políticas rumo à democratização. No pólo oposto encontra-se Bruce Gilley, que está convencido que forças pró-democracia vão emergir dentro do próprio Partido Comunista Chinês. Este académico norte-americano acredita que com a emergência de uma classe média cada vez mais exigente, as facções pró-democracia dentro do PCC vão ter cada vez mais força e o Partido vai perceber que o melhor para o país será partilhar o poder com outros actores e seguir um modelo “ocidentalizado” de democracia.

À procura da democracia “madura”

Ora, nada indica que dentro do PCC haja a percepção de um movimento teleológico rumo à democracia liberal parlamentar de tipo europeu e norte-americano. Mesmo muitas das vozes dissidentes têm colocado ênfase num caminho autónomo que deve ser seguido pela China. Em Abril de 1986, Hu Qili, à data membro do Comité Permanente do Politburo, que mais tarde viria a ser purgado na sequência dos protestos de Tiananmen, afirmou que “a reforma económica não pode progredir sem reformas políticas e culturais. Nós não devemos ceder as ideias de liberdade, democracia e direitos humanos ao capitalismo”. É interessante notar também que a maioria dos líderes assumia-se como marxista. A crítica era feita à forma autoritária de interpretação e prática do marxismo pelo regime. Esta é a linha mais relevante nos movimentos de intelectuais que se afirmaram como a consciência crítica “liberal” do regime ao longo dos anos seguintes. Naturalmente que as circunstâncias mudaram, mas convém prestar atenção ao documento “Storming the Fortress”, um relatório elaborado após o XVII Congresso do PCC por elementos da Escola central do Partido em que é defendido que a democracia intra-partidária (conceito caro a Hu Jintao) se alargue vários sectores da sociedade, de forma progressiva, para que, a partir de 2020 a China comece a ser uma “democracia madura e um estado de direito maduro”. Com características chinesas. Entretanto, em termos analíticos, o mais seguro é recordar que para Deng Xiaoping as reformas políticas que interessam eram aquelas que conferem maior eficiência administrativa.