Sunday, August 31, 2008

O Grande SAlto, 50 anos depois

José Carlos Matias

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 28-08-2008


“No ano passado a produção de aço foi de 5.3 milhões de toneladas. Consegues duplicar este valor este ano?”
Mao Zedong para o ministro da metalurgia da China, em Junho de 1958


“Está bem”, respondeu o ministro. Estávamos no início do processo de industrialização forçada que ficou conhecido com “O Grande Salto em Frente” (Dàyuèjìn). Em Janeiro de 1958, Mao tinha dado a conhecer o plano de modernização súbita da agricultura e da indústria em simultâneo, com o objectivo da China ombrear e mesmo ultrapassar os níveis de desenvolvimento das nações mais ricas do mundo. Para a história, fica a Grande Fome de 1959-61, período em que terão morrido 30 milhões de pessoas.
O Grande Salto, aceite hoje pela grande maioria dos historiadores e analistas, mesmo entre os neo-maoísta, como um desastre, marcou o fim do período inicial da Revolução em que ainda coexistia um regime de economia mista e um seguimento incondicional do caminho traçado pela União Soviética. O socialismo na República popular da China (RPC) sempre teve características que o diferenciaram das restantes experiências de socialismo de estado. Mas terá sido a partir do Grande Salto em frente que o Maoísmo se autonomizou como prática que diferia do socialismo burocrático de estado da URSS. Em 1956, antes do início do Grande Salto, já havia sido experimentada uma primeira fase de colectivização forçada com resultados bastante negativos. Dentro do PCC, as vozes mais moderadas, inspiravam-se no famoso discurso secreto do XX Congresso do PCUS em que Khruschev denunciara os crimes do estalinismo a desastrosa colectivização agrícola forçada levada a cabo pelo “Pai dos Povos”.

Um projecto de poder

Maquiavelicamente, Mao promoveu a Campanha das Cem Flores em que era incitada a crítica ao Partido e ao estado, um movimento que antecedeu outra campanha, de sentido inverso, a Anti-Direitistas. De forma prosaica, pode dizer-se que Mao atraiu os coelhos a sair das tocas para iniciar esmagar a oposição interna à linha estalinista-maoísta. Ou seja, a adopção e defesa por parte de Mao de políticas radicais de colectivização e de um reforço do totalitarismo tinha como pano de fundo a consolidação do poder dentro do Partido e do Estado – a mesma lógica está subjacente à Revolução Cultural poucos anos mais tarde. Jung Chang e Jon Halliday em “Mao: a História Desconhecida”, identificam vários momentos ao longo do percurso de Mao, bem antes da Revolução, em que o líder conspirou para eliminar ou afastar quem dentro do PCC e do movimento camponês e operário representava perigo para o seu projecto de poder. E o que realmente ambicionava com o Grande Salto em Frente? Jung e Halliday retratam um Mao desumanizado que promove a morte e a destruição a favor da insanidade do seu projecto socialista. “Temos de construir navios para chegar a São Francisco, Japão ou Filipinas”. Ou seja, mais do que “ultrapassar os níveis de desenvolvimento dos países capitalistas”, Mao desejava “dominar o mundo”, às custas do “homem novo”, o camponês totalmente dedicado à construção do socialismo, “livre” do feudalismo e da tradição confuciana.

Contra os pardais, fundir, fundir

Ao longo dos três anos do Grande Salto, a irracionalidade económica tomou conta das políticas agrícolas e industriais. Em Julho de 1957, o Diário do Povo proclamava:”podemos produzir quanta comida quisermos”.Mao já falava sobre “o que fazer com o excedente de alimentos”. De várias províncias surgiam estatísticas super inflacionadas sobre a produção agrícola. Entretanto, estavam em marcha mega-projectos de barragens e de desvios dos cursos dos rios. Muitos desses projectos ficaram inacabados. Depois veio a campanha anti-pardais. Em meados de 1958, teve início o desvio das energias da nação para a produção de aço. Por todo o país, camponeses derretiam todos os utensílios e instrumentos que tinham à mão para contribuir para a meta traçada por Mao: de 1957 para 1958 duplicar a produção de aço. Milhões de camponeses abandonaram as actividades agrícolas para se dedicarem a produzir aço em muitos casos de fraca qualidade. Peng Dehuai, à altura ministro da defesa, insurgiu-se contra o que viu: “Os novos e velhos foram derreter aço. Para cultivar os cereais apenas vejo crianças e mulheres. Como é que vamos conseguir chegar ao próximo ano?”. O destino de Peng foi o mesmo de muitos outros que se atreveram a levantar a voz e dizer o óbvio. Afastado em 1959 do cargo de ministro da defesa, em 1966 foi torturado por Guardas Vermelhos em pleno fervor da Revolução Cultural.
A Grande Fome e o falhanço na industrialização levaram ao recuo do Grande Salto, que se estava a transformar num salto para o abismo. A Mao foram-lhe retirados poderes. Cedeu o lugar de Presidente da RPC a Liu Shaoqi, mantendo a presidência do Partido, mas agora com Deng Xiaoping a delinear as políticas sociais e económicas. Cinco anos depois, através do Bando dos Quatro, Mao lançava um contra-ataque feroz aos “contra-revolucionários” e “direitistas”, com a Revolução Cultural.
Contudo, olhar apenas para o Grande Salto como um momento de insanidade de um líder despótico e nada iluminado não ajuda a compreender o homem e as suas circunstâncias.

Menos Mao?

O colunista do Asia Times Online Henry C. K. Liu lembra que Mao foi forçado por circunstâncias geopolíticas – a saída dos técnicos soviéticos e o embargo norte-americano – a suprimir a falta de capitais coma mobilização da vasta reserva de mão-de-obra do país. Uma das heranças deixadas pelo Grande Salto foi o sistema de “Duas Descentralizações, Três Centralizações e uma Responsabilidade. Ou seja, a descentralização da utilização do investimento e do trabalho local; ao controlo sobre decisões políticas, de planeamento e investimento; e a ideia segundo a qual cada unidade básica deve ser responsabilizada perante a sua unidade supervisora.
Liu vai mais longe e chega a defender que “o Grande Salto foi bem-sucedido em várias áreas” e a questionar se a morte de 30 milhões de chineses no final dos anos 1950 se deveu às políticas de Mao, especialmente ao Grande Salto em Frente. Liu culpa a “propaganda ocidental” pela imagem trágica de Mao e do Grande Salto em Frente. A sua perspectiva é útil na medida em que enquadra bem as opções políticas tomadas pela liderança, mas deixa muito a desejar quando elabora uma estratégia de desculpabilização de algo que o próprio PCC considera um dos maiores erros desde 1949.
Por outro lado, a insistência de Jon Halliday e de Jung Chang em diabolizar todo e qualquer aspecto da vida e da personalidade de Mao não ajuda a uma compreensão plena de períodos como o Grande Salto.

Outros Saltos

Cinco décadas depois, a expressão Grande Salto é usada e abusada. Por exemplo, estes Jogos Olímpicos foram descritos como uma versão moderna do Grande Salto, ou seja da modernização forçada de uma China em ascensão como potência mundial. A coincidência de este ano passarem 50 anos sobre o Dàyuèjìn reforçou a tendência para a alegoria e o jogo semântico. Algo que bem feito até pode ter pernas para andar. Tendo sempre em conta que, como referiu Fareed Zakaria, na edição de 11 de Agosto da Newsweek , que “To say that this news China is the same as the old is to be utterly ignorant or ideological –perhaps both”.

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