Friday, October 31, 2008

ASEM Assim

Texto Publicado no jornal Hoje Macau em 23-10-2008

José Carlos Matias

Este fim-de-semana, líderes dos 27 países da União Europeia, das 10 nações da ASEAN – Associação das Nações do Sudeste Asiático – juntamente com a China, Japão, Coreia do Sul, Mongólia, Índia e Paquistão encontram-se em Pequim para a sétima cimeira do ASEM (Asia-Europe Meeting). Doze anos após o primeiro encontro, muito se tem escrito sobre a natureza deste fórum de diálogo inter-regional de características únicas e potencialidades imensas, mas que pouco tem produzido em termos de resultados concretos.
Desta vez, no entanto, tendo a crise financeira internacional como pano de fundo, o encontro ASEM bem que poderia dar indicações sobre medidas globais para fazer face àquela que é considerada a pior crise financeira desde a II Guerra Mundial. A UE tem clamado por uma reforma do sistema financeiro global. Em Pequim, poderiam ser dados alguns sinais concretos. Tanto mais que na capital chinesa estão presentes dirigentes de países que somam 3870 milhões de pessoas, ou seja o equivalente a 58 por cento da população mundial. Neste grupo apenas faltam a Austrália, Rússia, Estados Unidos, Brasil e África do Sul para estarem representados os países mais industrializados e as potências do mundo em desenvolvimento. Numa altura em que o mundo se torna, nas palavras de Fareed Zakaria, gradualmente “Pós-Americano” e num século que vai ser marcado, de acordo com Kishore Mahbubani, pelo “Hemisfério Asiático”, que função papel e relevância tem o ASEM? Mais: em que medida interessa às várias partes envolvidas a criação de uma rede institucional mais forte e o aprofundamento desta interessante dinâmica inter-regional que teve início em 1996?

ASEM cada vez maior

A ideia inicial foi lançada pelo então primeiro-ministro de Singapura, Goh Chok Tong. Em meados dos anos 1990, quando a poeira do fim do mundo bipolar assentara, um diálogo entre a maior potência comercial do mundo e a Ásia Oriental onde residiam (e residem) as economias emergentes mais dinâmicas era visto como lógico, útil e pleno de potencialidades. Na primeira cimeira, em Banguecoque, na altura ainda com apenas 28 países, o ASEM lançou as pedras para três iniciativas centrais: lançar um plano de Promoção de Investimento, criar o Asia-Europe Business Forum, a Asia Europe Foundation e o Asia Europe Technology Centre
A primeira cimeira beneficiou de ventos de optimismo face a este novo tipo de relacionamento nas relações internacionais. O diálogo tocou assuntos tão diversos como o multilateralismo, reforma das Nações Unidas, diálogo inter-cultural, cooperação tecnológica, ambiente, combate à pobreza, educação, além do comércio e investimento, entre outros.
Ao longo das seis cimeiras já realizadas o número de participantes foi aumentando, à medida que a UE se alargava à Europa de Leste. No ano passado, a Índia, Paquistão e Mongólia foram convidados e aderiram ao ASEM, dando uma nova dimensão inter-regional e trans-reagional a este fórum: o que começou por ser um encontro entre a Europa Ocidental e a Ásia Orienta, passou a incluir, devido ao alargamento da UE, a Europa Central e parte do leste europeu e – mais importante – as duas maiores potências da Ásia do Sul. Com tantos membros, este clube tornou-se ainda mais heterogéneo e um chapéu debaixo do qual se movimentam sub-dinâmicas regionais, bilaterais e inter-regionais. No contexto da ASEM há desde o início dois processos que tinham tido início anteriormente, mas que se desenvolveram e aprofundaram ao longo destes doze anos: a relação UE-ASEAN e a dinâmica ASEAN Mais Três – Sudeste Asiático coma China, Japão e Coreia do Sul. Por outro lado, subjacentes ao Encontro Ásia Europa estão as relações UE- China e recentemente Bruxelas-Nova Deli. Além disso, este tipo de organizações multilaterais abrangentes são adequadas para que problemas bilaterais sejam dirimidos e moderados de forma bem mais eficiente do que através do mero diálogo bilateral entre dois estados. Por exemplo, espera-se que em Pequim, os dirigentes do Camboja e da Tailândia se encontrem para falar sobre o problema fronteiriço que se tem agudizado ao longo ao longo dos últimos meses.
Na base do ASEM estão quatro pontos cardeais que guiam todo este processo: informalidade, multi-dimensionalidade. Ênfase em parcerias em plano de igualdade e perspectiva dual baseada quer nos contactos de alto nível quer nas relações entre actores da sociedade (people-to-people links).

E os salto qualitativos?

As palavras, princípios orientadores e declarações de intenções têm sido estimulantes, mas, na prática, o ASEM deixa algo (bastante) a desejar. Há várias razões para que o ASEM não se tenha ainda transformado numa verdadeira organização inter-regional com um vector institucional significativo e uma rede de diálogo a vários níveis. Numa análise bem interessante, o académico alemão Jurgen Ruland salienta que, por norma, os fóruns inter-regionais são, sem excepção, superficiais, uma vez que os países envolvidos não estão interessados em investir substancialmente numa “governance” que materialize as palavras de ocasião. Por outro lado, quanto mais nações estiveram envolvidas, mais dispersos são os interesses e o sentido estratégico das relações. Já Christopher Dent considera que o ASEM é um exemplo de um “regime cooperativo” que incorpora aspectos da “interdependência complexa que prevalece no sistema internacional”. Face a esta análise, José Sales Marques perguntava, numa conferência realizada há três anos pelo Fórum Luso-Asiático, em Macau, “onde estão os vários níveis de diálogo permanente? E a sociedade civil?”.
Numa lógica de balança de poderes internacionais, o ASEM deve ser entendido numa fase inicial como uma resposta ao processo do APEC – Asia Pacific Economic Cooperation – lançado em 1989, que integra os EUA, México, Canadá, países da costa do Pacífico da América do Sul, Austrália, Nova Zelândia, China, Sudeste Asiático, Japão, Coreia do Sul e Rússia. A atitude unilateralista de Washington nos anos da Administração Bush “empurrou” os países asiáticos que fazem parte dos dois blocos para a valorização dos laços com a UE.
Além das contas que se podem fazer sobre o peso absoluto e relativo de cada uma das potências sobre as restantes, o ASEM apresenta aspectos interessantes com impacto no médio e longo prazo. Por exemplo, Julie Gilson sublinha que o processo ASEM tem contribuído para a forma como o lado asiático se encara como um grupo com afinidades e interesses comuns face ao bloco europeu. Além disso, sobressai no ASEM uma dinâmica de construção de identidades através da intersubjectividade euro-asiática. Este tipo de processo é no entanto difícil de medir, sendo por vezes pouco palpável. Ou seja, será eventualmente mais visível noutra fase deste Fórum. Até lá, Jurgen Ruland pede: aprofundem-se as instituições. “Essa a é a melhor forma de desenvolver uma utilidade multilateral ao ASEM”. E, já agora, uma vez que Singapura é sede da Asia-Europe Foundation (ASEF) – Macau poderia quiçá desempenhar um papel activo em eventos e projectos de cooperação, como actor sub-nacional. Afinal estamos a falar do Encontro Ásia-Europa.

devolver o "quan" ao povo

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 09-10-2008.

José Carlos Matias

O plenário do Comité Central do Partido Comunista Chinês (CCPCC) que se reúne nestes dias é considerado o mais importante dos últimos anos. Hu Xingdou, professor no Instituto de Tecnologia de Pequim, defende mesmo que este é o “plenum” mais relevante desde o início dos anos 1990. Pode parecer exagero, mas o certo é que há razões para olhar para este encontro com a máxima atenção. O CCPCC está reunido numa altura em que o mundo treme com a crise financeira internacional e num contexto de abrandamento do crescimento da economia chinesa. O conclave acontece após meses de exposição intensa da China face ao exterior, com o terramoto de Sichuan, os Jogos Olímpicos e escândalo do leite contaminado com melamina. Além do mais, em Dezembro passam 30 anos sobre o famoso discurso de Deng Xiaoping perante o CCPCC, quando pediu aos seus camaradas para emanciparem as mentes (do maoísmo) e abraçarem um novo rumo marcado pelas reformas e abertura (“Gaige kaifang”). Nos próximos quatro dias, na agenda de trabalhos, está o novo impulso que a liderança Hu-Wen quer dar às reformas, especialmente no que diz respeito ao mundo rural, onde vivem ainda mais de 700 milhões de pessoas. Em concreto que reformas deverão ser discutidas? A nova fase da “emancipação das mentes” implicará reformas políticas e administrativas com algum impacto?

Depois do “li”, venha o “quan”

Apesar de todas as transformações, interpretar os sinais políticos na China ainda é, parafraseando o sinólogo Simon Leys (pseudónimo do belga Pierre Ryckmans) algo semelhante à “arte de interpretar inscrições inexistentes escritas com tinta invisível numa página em branco". Em todo o caso, vale a penar anotar alguns sinais e declarações. Desde logo as palavras do líder do PCC na importante província de Henan. Zhang Chunxian afirmou que se nos últimos 30 anos a prioridade foi devolver o “li” (利 – no sentido de interesses económicos) às pessoas, agora o importante é devolver o “quan” ao povo. Numa tentativa de interpretar estas palavras, Wu Zhong, analista do Asia Times, salienta que o conceito de “quan” (权) é ambivalente: tanto pode traduzir-se por direitos como por poder. Provavelmente Zhang preferiu, propositadamente, não desfazer a dúvida.
Uma primeira leitura tem a ver com a prioridade anunciada pelos órgãos oficiais à agricultura. No plenum os membros da cúpula do PCC vão delinear políticas que privilegiam a China que vive no campo e que tem beneficiado menos com o processo das reformas económicas que trouxeram prosperidade sobretudo às zonas costeiras e às cidades.

A atenção ao mundo rural

O eixo Hu-Wen é conhecido por ter muito mais sensibilidade para as questões rurais que Jiang Zemin e Zhu Rongji. Pouco depois de ter assumido a chefia do partido e do estado, a Quarta Geração (“disidai”) tomou várias decisões com vista à redução substancial da carga fiscal imposta aos camponeses e às suas famílias. No ano passado, a Assembleia Popular Nacional aprovou um pacote de medidas que incluiu a gratuitidade do ensino primário para as famílias que vivem nas zonas rurais e uma expansão do sistema cooperativo e cuidados de saúde. Sem dúvida que este conjunto de medidas – corte drástico da carga fiscal e apoios na saúde e educação – constituíram passos positivos no apoio às zonas rurais. Mas isso não fez com que as revoltas e protestos no campo tenham aparentemente diminuído. A aquisição por parte dos governos locais de terras usadas (mas não detidas) por camponeses para serem entregues a projectos imobiliários ou industriais tem gerado protestos por vezes violentos. De resto, a instabilidade e os problemas que afectam as zonas rurais têm sido questões plenamente assumidas pela liderança chinesa em inúmeras ocasiões. O percurso de Hu Jintao, que chefiou o partido em províncias do interior e menos abastadas como Guizhou e Tibete, e o talento de Wen Jiabao para “falar ao coração” dos camponeses são factores que potenciam a promoção deste tipo de políticas. Por outro lado, a ausência de medidas de promoção do bem-estar dos direitos da população que vivem nas zonas rurais poderia colocar em causa não só a estabilidade social como a legitimidade do Partido. Contudo, essa necessidade de preservar alguma “harmonia social” implica outros passos mais audazes. Wu Zhong indaga se “quan” poderá significar direitos ligados à propriedade rural. Actualmente, os camponeses podem “arrendar” o uso da terra através de um contrato normalmente válido por 30 anos, mas, na prática, os governos locais podem resgatar uma propriedade em nome do interesse do estado. Isso acontece muitas vezes sem que os camponeses tenham uma compensação adequada, o que tem gerado inúmeros protestos.

Que direitos e poderes?

Sendo muito improvável que sejam dados passos no sentido da privatização dos terrenos agrícolas, faz todo o sentido que sejam levadas a cabo mudanças no sistema de gestão e uso das terras por parte dos camponeses. Por exemplo, Wu especula se o direito de uso dos terrenos poderá ser atribuído às aldeias colectivamente. Assim, sempre que uma empresa quisesse usar essa propriedade teria que negociar com os líderes dos comités de aldeia. Um cenário destes poderia retirar a dirigentes e membros locais algum (ou muito) espaço de manobra para os conluios que tantos protestos têm causado.
Numa outra interpretação, o “quan” enquanto poder poderá implicar o reforço de mecanismos de auscultação e consulta quando do processo de tomada de decisões. É nesse sentido que devem ser entendidas as palavras de Hu Jintao e Wen Jiabao quando salientam que é preciso aprofundar a “democracia socialista com características chinesas”. Tudo poderá passar pelo que Yu Keping chama de democratização gradual. Em “Ideological Change and Incremental Democracy in Reform-Era China”, Yu, que ficou famoso pelo texto “Democracy Is a Good Thing”, considera que sendo a participação cívica essencial na democracia política, a melhor forma de avançar com as reformas políticas é “alargar a participação política por parte dos cidadãos”. Sendo esta uma asserção de “La Palisse”, não deixa de ter algum significado considerando que Yu é director adjunto do Departamento de Tradução do partido Comunista Chinês e que tem sido a voz mais audaz, nas estruturas dirigentes do Partido, na defesa da “democracia” como algo de bom para a China. Democracia essa gradual, de acordo com as características e necessidades da China e, claro, tendo o PCC como líder em todo o processo.

O “li” também inspira cuidados

Além de se poder especular sobre que tipo de “quan” será devolvido ao povo, é oportuno também ter em conta que o “li” (interesse económico) está a passar por um período diferente dos tempos em que o céu parecia o limite. Wen Jiabao tinha avisado em Fevereiro que este seria um ano difícil para a economia chinesa. Tudo começou com as tempestades de neve que paralisaram parte do país durante vários dias. Ao mesmo tempo, a inflação começara a atingir níveis alarmantes, sobretudo no custo dos alimentos. Com a subida dos custos de produção, valorização do yuan e com a perspectiva de uma crise económica nos mercados de consumo e exportação da maioria dos bens produzidos na China, certamente que “o motor” que tem gerado crescimentos anuais de cerca de dois dígitos inspira cuidados.

Um Novo Salto

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 25-09-2008

José Carlos Matias

Depois de, em 2003, na missão Shenzhou V, ter colocado o primeiro chinês no espaço - Yan Liwei o primeiro “taikonauta” – e de em 2005 ter colocado dois astronautas em órbita, na missão Shenzhou VI, com um ano de atraso face ao previsto inicialmente, a China dá um passo importante ao lançar três astronautas (taikonautas) para o espaço, cuja missão é realizar um “Space Walk”, ou seja realizar operações fora da nave espacial fora da cápsula.
Caso Pequim consiga cumprir o calendário previsto, até 2020 a China poderá ter em órbita um Laboratório Espacial. Pouco depois, os “taikonautas” poderão alunar, no culminar de uma “Longa Marcha”, que teve início em meados dos anos 1950, quando Qian Xuesen regressou à China, oriundo do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, com o sonho de colocar o seu país ao lado dos EUA e da URSS como potência espacial. O processo foi tortuoso até 1999, quando Pequim lançou a primeira missão espacial não-tripulada a Shenzhou I.
O que está por detrás desta dinâmica chinesa no espaço? Que vantagens traz um programa espacial com custos financeiros muito avultados e com benefícios pouco óbvios no curto prazo?

Benefícios múltiplos

Um olhar sobre o “Livro Branco das Actividades Espacial da China” permite desde logo salientar que o programa espacial está ao serviço da estratégia compreensiva de desenvolvimento do país. Isto aplica-se quer no plano doméstico, quer na política externa chinesa. Joan Johnson-Freese lembra que aspectos como “orgulho doméstico, prestígio internacional, desenvolvimento económico e desenvolvimento de tecnologia de uso dual (científico e socioeconómico) estão na base da organização de missões espaciais tripuladas”. Além destes factores, é sabido que os programas espaciais estão normalmente relacionados com a modernização militar. Ou seja, um programa espacial tem efeitos multiplicadores e multi-direccionais que podem despoletar um ciclo virtuoso na economia, ciência e nas forças de defesa.
No caso da China, cada um destes factores encaixa-se nos desafios e ambições que o país tem pela frente. Como já se verificou no passado com as naves Shenzhou V e VI, o sucesso das missões é explorado internamento como forma de promover o orgulho nacional e o patriotismo. Naturalmente que esta projecção de poder tem igualmente uma função externa no processo em curso de emergência do país enquanto potência potencialmente capaz de ombrear no futuro com os EUA e a Rússia no espaço. A este nível, o primeiro efeito é regional: Pequim tomou a clara liderança no contexto asiático face às duas outras potências regionais: Índia e Japão. No que diz respeito aos benefícios económicos, os programas espaciais geram novas possibilidades de inovação tecnológica que mais tarde pode ser aplicada na sociedade civil e na economia, tornando-a mais dinâmica e moderna, em virtude do investimento feito em investigação e desenvolvimento.

As palavras e os actos

O programa espacial chinês deve também ser entendido tendo em conta a ambição da China de fazer parte da Estação Espacial Internacional, um projecto que inclui as agências espaciais da Europa, Rússia, EUA, Japão e Canadá. Pequim não conseguiu ainda entrar neste clube sobretudo devido à oposição de Washington que, como que olhando-se ao espelho, duvida dos objectivos pacíficos da estratégia da China para o espaço. Aliás, a questão da militarização do espaço tem contornos “orwelianos”. Por um lado, a China compromete-se a utilizar o espaço para fins pacíficos ao mesmo tempo que em Janeiro de 2007 realizou um teste anti-satélite com um míssil balístico que destruiu um satélite meteorológico desactivado. Por outro lado, os EUA duvidam das intenções de Pequim, quando simultaneamente em 2006 o Office of Science and Technology Policy do governo norte-americano referia que regimes de controlo e restrição da utilização de armas no espaço “não devem impedir os direitos dos EUA de investigar, desenvolver e testar operações no espaço de acordo com os interesses nacionais”. No que diz respeito à utilização de armas nucleares no espaço, ainda que rejeite a soberania de qualquer nação sobre o espaço, um documento orientador das políticas espaciais dos EUA - American National Space Policy paper – indica que os Estados Unidos devem desenvolver actividades nesse sentido, caso isso esteja de acordo com a estratégia norte-americana ao nível da segurança interna e dos interesses da política externa.

Desconfiança sino-americana

As preocupações de Washington face às ambições do programa espacial chinês tinham sido já evidentes quando os EUA criticaram a União Europeia por ter firmado um acordo com Pequim em que a China se tornou no principal parceiro externo no desenvolvimento do sistema europeu de navegação e posicionamento – o Galileu. Nos EUA, o cenário de tropas chinesas utilizarem um sistema de navegação europeu - de aliados - em operações militares contra forças apoiadas pelos EUA num cenário hipotético de guerra no estreito de Taiwan é visto como inaceitável.
O olhar de desconfiança não é um exclusivo nos EUA. Na Índia, A.V. Lele, analista do Instituto indiano de Análise e Estudos de Defesa alerta que o programa espacial chinês que inclui satélites geoestacionários e veículos de lançamento, estações espaciais terrestre e um sistema de navegação - o Beidou II -, vai contribuir para a modernização militar do Exército Popular de Libertação (EPL) e, em consequência, será uma potencial ameaça para os EUA e para os aliados dos norte-americanos na região.
Tal como acontece com certas análises nos EUA sobre a emergência da China como ameaça, parte do que é referido por alguns analistas de “think tanks” nasce de um exagero sobre as reais capacidades da China. Além disso, é evidente também que as lógicas da China-Ameaça e do “Perigo Amarelo” no espaço também intoxicam o debate.
Em Pequim, existe uma abordagem dúbia e realista. Por um lado, Pequim pede esforços para que seja firmado um acordo internacional que possa proibir a utilização de armas no espaço; por outro realizou o teste anti-satélite e parece, em privado, perceber que podemos estar num ponto sem retorno neste processo. Em 2004, um documento do EPL referia que na preparação para ganhar a guerra da informação e alta tecnologia, dominar o espaço é essencial.

Dos exageros à importância da cooperação

Não desvalorizando o que está em causa, vale a pena prestar atenção ao que tem dito Gregory Kulacki, analista da Union of Concerned Scentists. Em primeiro lugar, muita da informação que está a servir de base para o que dizem alguns analistas nos EUA tem por base artigos de credibilidade e autoridade muito duvidosa. Por exemplo, em 2004 foi noticiado que a China estava a desenvolver micro-satélites parasitas. Contudo a fonte dessa informação era um blogger desconhecido. Após ter analisado centena de artigos e documentos, Kulacki concluiu que nos EUA muitos autores não sabem distinguir fontes credíveis de não-credíveis e artigos com autoridade dos que apenas expressam rumores ou opiniões.
Quer isto dizer que existem graves falhas de comunicação e mal-entendidos sobre as intenções de cada um dos lados. No jogo das percepções, a realidade muitas vezes não se cola às narrativas mais sensacionalistas. Um acordo sobre o desarmamento no espaço - que já foi pedido pela Rússia e pela China, mas recusado pelos EUA – seria um passo importante. É necessário criar regimes seja no âmbito da ONU ou do clube de potências espaciais. Quanto aos EUA e a China, não seria má ideia a criação de um mecanismo de diálogo estratégico sobre questões espaciais, à semelhança do que acontece com os assuntos relacionados com a economia e finanças. Por si, poderia não dissipar a desconfiança mútua, mas pelo menos institucionalizaria o diálogo sobre algo tão sensível.