Da Reforma e da Transição
Texto Publicado no jornal Hoje Macau no dia 6 de Março de 2008
“Sem reforma há apenas um caminho - para a perdição”
Deng Xiaoping, em 1992, durante o “tour” pelo sul da China para promoção das reformas económicas
As reformas económicas (gaige kaifang) introduzidas há 30 anos por Deng Xiaoping têm guiado a República Popular da China num período de ritmo de crescimento sem precedentes na História. Ao contrário do que sucedeu na União Soviética nos anos 1980, as reformas na China não foram acompanhadas por uma diminuição do cariz “leninista” do Partido Comunista na gestão e comando do rumo das reformas económicas e no monopólio do poder político. Alguns autores consideram que parte do segredo da China foi não cometer os mesmos erros de Gorbatchov, não só em termos de eficiência da reestruturação económica (perestroika) mas sobretudo na questão da abertura do regime rumo a uma partilha de poder, que no caso soviético, devido a vários factores, resultou no colapso do sistema. Paralelamente a esta observação surge uma outra perspectiva que alerta para os perigos da ausência de uma abertura política para o próprio crescimento sustentado e saudável da economia no futuro. Subjacente a este debate sobre que melhores receitas reformistas servirão a RPC estão visões diferentes, ou mesmo opostas, sobre a evolução do “socialismo de mercado com características chinesas”, numa lógica de transição. Daí que, naturalmente, as reformas de hoje estejam indelevelmente ligadas às transições de amanhã.
A reforma administrativa
A reforma está no topo da agenda da sessão anual da Assembleia Nacional Popular (ANP), que teve início esta quarta-feira. A reforma administrativa foi erguida pelo primeiro-ministro como prioridade de modo a que o governo central aumente a sua eficiência e possa responder melhor e de forma mais ágil às necessidades do povo - instituições que melhor respondam às necessidades da população são per se factor de legitimidade. A criação de quatro Super Ministérios que centralizem as pastas da energia, indústria, transportes e ambiente deve ser entendida como, segundo Mao Shoulong da Universidade Renmin de Pequim, uma forma de adequar o processo de tomada de decisões a normas internacionais e visam criar um sistema que separa a dimensão executiva das decisões tomadas numa determinada área das actividades das agências regulatórias. O caderno de encargos desta sessão da ANP reflecte o movimento de reforço do poder de Hu Jintao e Wen Jiabao na estrutura do Partido e, em consequência, do Estado. A agenda da reforma administrativa tinha sido desde logo colocada em cima da mesa por Hu em 2002, quando assumiu a liderança do PCC, altura em que iniciou a promoção da “civilização política” (zhengzhi wenming), ou seja reformas e alterações do sistema administrativo e político com vista à melhoria da eficiência de um processo de tomada de decisões “científico”.
“Rule by law”
Neste processo, a promoção do Estado de Direito desempenha um papel muito importante. Contudo, não estamos perante uma promoção do Estado de Direito (rule of law) da separação do poder ou a criação de um regime de pesos e contrapesos. Há, de facto, uma defesa do primado da Lei, mas, seguindo a análise de Willy Lam, a lógica é “rule by law”. Quanto a isto Wen Jiabao deixou claro, em 2004, numa resposta a um jornalista, que “o Partido lidera o povo na formulação da Constituição”. Em todo o caso, nos últimos anos, são visíveis sinais interessantes como o aumento exponencial das litigações e a subida do número de cidadãos que processam os governos locais – o fenómeno de minggaoguan.Paralelamente, têm sido movidas campanhas de combate à corrupção, de criação de mecanismos de responsabilização dos detentores de cargos públicos (accountability) e de disponibilização de mais informações sobre as actividades de cada unidade do Governo Central e das dos governos locais.
Transições: duas visões americanas
Apesar deste esforço e do aparente vigor com que a liderança lida com os problemas de eficiência burocrática e administrativa, subsistem ainda demasiados casos de directivas governamentais não cumpridas. O académico chinês Mixin Pei, residente nos Estados Unidos e investigador do Carnegie Endowment , considera que apesar do estado chinês parecer ser centralizado e omnipresente, “a sua capacidade para implementar as políticas e garantir o cumprimento das directivas é bastante limitada pela sua incoerência, tensões internas e fraquezas várias”. Numa visão pessimista, Pei traça um retrato quasi-catastrófico do aparelho estatal, especialmente a nível local, onde, argumenta, a corrupção é endémica. Para Pei a China está a gerar “estados-mafia” a nível provincial que fogem quase por completo à cadeia de comando de Pequim e que funcionam à margem do incipiente estado de direito chinês. A transição está armadilhada porque o estado se torna num predador; em vez de cumprir o seu papel de alguma redistribuição da riqueza e de modernização da economia, no verdadeiro sentido, ou seja em termos de inovação e competitividade além do factor da mão-de-obra extensiva. Ou seja, este autor não acredita no argumento segundo o qual em regimes autoritários a abertura à economia de mercado gera forças que pressionam as elites a acelerar as reformas políticas rumo à democratização. No pólo oposto encontra-se Bruce Gilley, que está convencido que forças pró-democracia vão emergir dentro do próprio Partido Comunista Chinês. Este académico norte-americano acredita que com a emergência de uma classe média cada vez mais exigente, as facções pró-democracia dentro do PCC vão ter cada vez mais força e o Partido vai perceber que o melhor para o país será partilhar o poder com outros actores e seguir um modelo “ocidentalizado” de democracia.
À procura da democracia “madura”
Ora, nada indica que dentro do PCC haja a percepção de um movimento teleológico rumo à democracia liberal parlamentar de tipo europeu e norte-americano. Mesmo muitas das vozes dissidentes têm colocado ênfase num caminho autónomo que deve ser seguido pela China. Em Abril de 1986, Hu Qili, à data membro do Comité Permanente do Politburo, que mais tarde viria a ser purgado na sequência dos protestos de Tiananmen, afirmou que “a reforma económica não pode progredir sem reformas políticas e culturais. Nós não devemos ceder as ideias de liberdade, democracia e direitos humanos ao capitalismo”. É interessante notar também que a maioria dos líderes assumia-se como marxista. A crítica era feita à forma autoritária de interpretação e prática do marxismo pelo regime. Esta é a linha mais relevante nos movimentos de intelectuais que se afirmaram como a consciência crítica “liberal” do regime ao longo dos anos seguintes. Naturalmente que as circunstâncias mudaram, mas convém prestar atenção ao documento “Storming the Fortress”, um relatório elaborado após o XVII Congresso do PCC por elementos da Escola central do Partido em que é defendido que a democracia intra-partidária (conceito caro a Hu Jintao) se alargue vários sectores da sociedade, de forma progressiva, para que, a partir de 2020 a China comece a ser uma “democracia madura e um estado de direito maduro”. Com características chinesas. Entretanto, em termos analíticos, o mais seguro é recordar que para Deng Xiaoping as reformas políticas que interessam eram aquelas que conferem maior eficiência administrativa.
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