A (in)sustentável leveza do poder
O Sínico
A (in)sustentável leveza do poder
José Carlos Matias
“There are those who move people by enlightened virtue and those who make people obedient by the power of authority. It is like the phoenix in flight, which all the animals admire, or tigers and wolves stalking, which all the animals fear."
Dito budista citado no livro “Mastering the Art of War” de Zhuge Liang e Liu Ji.
“It is better to be feared than loved, if you cannot be both”
Niccolo Machiavelli em “O Príncipe”
O poder sempre foi difícil de medir. Exércitos, tecnologia militar, fábricas, Produto Interno Bruto são quantificadores tradicionalmente usados como pesos para quantificar a distribuição das capacidades no sistema internacional. Contudo, se entendermos o conceito de poder de uma de uma forma mais abrangente, ou seja como a capacidade de influenciar o comportamento de outro (neste caso outro estado) ainda que contra sua vontade, a grelha de análise tem que ser mais complexa e terá que integrar outros elementos – quer quantitativos, quer sobretudo qualitativos.
Enquanto tradicionalmente se utilizam dados ligados ao “hard power”, nesta outra forma de olhar para a distribuição das capacidades devem ser usados indicadores de “soft power”. A avaliação do peso da leveza desse poder implica uma análise sobre aspectos ligados à cultura, ideologia e acção diplomática, entre outras vertentes. O académico norte-americano Joseph S. Nye carimbou este conceito de forma veemente no seu livro “Soft Power: The Means to Sucess in World Politics”. Em traços, gerais o “poder macio” (chamemos-lhe assim) diz respeito à capacidade para alguém conseguir os seus objectivos no plano internacional sem usar métodos de coação ou através de pagamentos. Ou, de forma mais incisiva, “o soft power reside na capacidade para influenciar as preferências dos outros, de liderar pelo exemplo e atrair os outros a fazer o que se pretende que eles façam”, explica Nye. Alguns autores, como Joshua Kurlantzick, têm um enetdnimento mais abrangente e incluem nesta grelha de análise também a ajuda ao desenvolvimento, investimento externo e participação em organizações multilaterais. Seja em stricto sensu ou em lato sensu, o conceito entrou no jargão dos analistas e serve de auxílio importante para perceber a ascensão da China, especialmente desde 1989. Uma emergência que não pode ser apenas entendida tendo em conta o crescimento económico e as despesas militares.
O Poder da Língua e da Cultura
A língua e a cultura são instrumentos per se do “poder macio”. A este respeito, Lee Kuan Yew pai-fundador e “Ministro Mentor” de Singapura assegura que “o soft power apenas é alcançado apenas quando uma nação é admirada por outra que quer emular aspectos da sua civilização”. Ao longo dos últimos anos, a China tem dado passos significativos na direcção de se tornar num actor atractivo no plano internacional.
Começando pela cultura e pela língua, desde 2004 que, através do Gabinete do Conselho internacional da Língua Chinesa, tem criado uma rede de Institutos Confúcio, seguindo o caminho traçado desde há dezenas de anos pelo Reino Unido, com o British Council ou pela Alemanha com o Goethe Institut. O Instituto Confúcio, presente em 36 países de todos os continentes, serve de elo de transmissão e promoção da língua e da cultura chinesa, associando-se a parceiros locais – universidades e institutos superiores. O objectivo do Ministério da Educação da RPC é que dentro de dois anos haja 100 milhões de pessoas a aprender chinês como língua estrangeira. Além de dar a conhecer a sua língua fora de portas, a China recebe cada vez mais estudantes estrangeiros que estudam não apenas a língua mas também a história, a arte a filosofia chinesa. Certamente que no médio-prazo começará a ser visível o efeito desta aposta em várias dimensões, especialmente ao nível da “tradução” (no sentido lato) que é necessária no diálogo ainda desconcertado entre a China e o resto do mundo, especialmente com o Ocidente.
Um “Consenso de Pequim”?
Num outro plano, naquilo que Kurlantzick classifica de “ofensiva de charme da China”, salienta a forma como a diplomacia chinesa evoluiu desde o fim da Guerra Fria revestindo-se na última década de uma dinâmica impressionante. Em primeiro lugar, Pequim enfatiza a lógica de “win win” (jogo de soma positiva) nas relações internacionais, contrariando a percepção de “jogo de soma negativa” típico da Guerra Fria. Em segundo, contrariamente ao intervencionismo norte-americano, a China acena com o princípio da não ingerência, seguindo a fórmula enunciada por Zhou Enlai dos Princípios da Coexistência Pacífica. Além disso, a RPC surge no plano internacional como um modelo de nação em desenvolvimento em que o processo é controlado a a partir do topo do estado, evitando uma abertura abrupta dos mercados que tantos estragos causou em países latino-americanos e do sudeste asiático que seguiram as receitas do “Consenso de Washington”. Estas três faces da China atraem sobretudo os países em desenvolvimento, que procuram alternativas ao modelo de cooperação dos EUA e da Europa.
O ex jornalista Joshua Cooper-Ramo formulou o conceito de “Consenso de Pequim”, que, em oposição ao de Washington (neoliberal), não promove soluções uniformes para diferentes situações, nem terapias de choque “iluminadas”, preferindo propor modelos de desenvolvimento baseados nas características de cada país. Este “Consenso de Pequim” nunca foi referido pelas autoridades chinesas, mas, na verdade, transporta consigo aspectos fundamentais referentes á postura da China no mundo ao longo dos últimos dez anos.
Paz e prosperidade na vizinhança
Ao mesmo tempo que lança pontes em várias direcções numa estratégica multifacetada e multi-direccional, a RPC procura criar um arco de paz e prosperidade na sua vizinhança. Longe vão os tempos da China maoísta que assustava o Sudeste Asiático, que se uniu numa frente anti-comunista, criando a ASEAN – Associação das Nações do Sudeste Asiático, cujo principal “leit motiv”, aquando da sua criação nos anos 1960, foi o combate à expansão do comunismo. Actualmente, interdependência económica e as ligações e a entre a China e a ASEAN atingiram níveis históricos, numa altura em que as duas partes negoceiam um Acordo de Livre Comércio. Ao nível do diálogo regional sobre questões de segurança, Pequim é uma parte activa quer no processo do Fórum Regional da ASEAN quer no Grupo ASEAN Mais 3 (China, Japão e Coreia do Sul). A grande viragem aconteceu em 19997 quando, na sequência da Crise Asiática Financeira, Pequim não desvalorizou a moeda num gesto de grande apoio aos países afectados pelo descalabro dos mercados cambiais e financeiros.
Esta política de boa vizinhança é fundamental para a modernização da China. Daí que desde meados dos anos 1990, Pequim tenha resolvido os diferendos fronteiriços que mantinha com países como a Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tajiquistão.
Emergência e Desenvolvimento Pacífico
Num plano mais global, a RPC tem procurado fazer eco da tese do “desenvolvimento pacífico” (hépíng fāzhǎn), que sucedeu no jargão oficial à “emergência pacífica (hépíng juéqǐ), abandonada por causa das implicações do termo “emergência”. O objectivo desta tese (e postura) é dissuadir os efeitos da recorrente tese da “China Ameaça” que tanto caminho fez (e ainda faz) nos EUA, Taiwan e Japão. No fundo trata-se de projectar uma imagem da China enquanto poder responsável. Nas palavras do académico chinês Wang Yizhou, “mantendo uma postura construtiva e proactiva, a China vai entrar no século XXI com a imagem de um grande poder responsável. Com o passar do tempo a chamada teoria da China Ameaça vai ser derrotada”. Como sabemos ainda há um longo caminho para que esta previsão seja cumprida na plenitude.
Segundo Susan Shirk, especialista em assuntos chineses e ex adjunta do vice-secretário de Estado dos EUA durante a administração de Bill Clinton, a tese da “emergência pacífica” assenta em três pilares: acomodação com os países vizinhos, ser um “player” em organizações multilaterais e usar laços económicos para ganhar a amizades internacionais. Em todos estes aspectos a China tem sido relativamente bem-sucedida. No primeiro pilar, como referimos, foram dados passos de gigante na criação de um ambiente de paz e co-prosperidade na vizinhança (apesar dos problemas com Taiwan e das sempre complexas relações com o Japão). No segundo, além da citada dinâmica com a ASEAN, a China lançou com a Rússia a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) que junta ao “urso” e ao “dragão”, as cinco antigas repúblicas soviéticas: Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Turquemenistão. A estratégia multi-direccional tem sido visível também na medida em que a China cria mecanismos de diálogo intensos com um grupo de países como são os casos (todos com as suas especificidades) do Fórum China-África, do Fórum para a Cooperação entre a China e os Países Lusófonos (Macau) e dos laços cada vez mais fortes (complexos) com a União Europeia. Fora do plano do multilateralismo mais “regional”, além de ter aderido à Organização Mundial de Comércio (OMC), Pequim tem participado cada vez mais em missões de manutenção de paz das Nações Unidas. No que diz respeito a “usar laços económicos para criar amizades internacionais”, a cooperação com África, com a ASEAN ou os acordos de livre comércio com a Austrália e a Nova Zelândia são alguns exemplos claros desse princípio.
Uma China “Neo-Bismarkiana”?
Todo este frenesim tem suscitado um debate bastante interessante. Afinal, a China já não mantém o “low profile” que Deng tinha delineado embora Pequim ainda seja bastante reticente em não seguir o outro conselho do “Pequeno Timoneiro”: nunca tomar a dianteira nas grandes questões internacionais. Numa análise sobre a série de parcerias estratégicas que a RPC tem firmado com vários países na última década, Avery Goldstein classifica a estratégia chinesa de “Neo-Bismarkiana”, numa alusão comparativa à Alemanha de Otto von Bismark unificador da nação germânica. O primeiro chanceler da Alemanha, durante as últimas décadas do século XIX, procurou criar laços amigáveis com as restantes médias e grandes potências do “Velho Continente” para que esses países evitassem travar o crescimento da Alemanha. Os parceiros não afrontavam o recém-criado grande país do centro da Europa porque teriam bastante a perder em termos económicos e diplomáticos com uma ruptura.
Tendo em conta o que aconteceu na primeira metade do século XX, esta perspectiva sugere que a ascensão de uma China será no médio-prazo bastante mais agressiva. Historiadores e estudiosos das relações internacionais têm analisado as fases de transição de poder no sistema internacional, salientando que quase sempre essa fase é acompanhada por conflitos de grande dimensão. A excepção aconteceu aquando da transição da posição de primeira potência mundial da Grã-Bretanha para os EUA. Mas será que podemos comparar essas situações com o momento que vivemos? A História repete-se mesmo? E será que a China vai mesmo estar em “paridade de poder” económico com os EUA dentro de 20, 30 ou 40 anos?
Percepções, obstáculos e limites
Neste jogo de balança de poderes – no sentido realista - e também de re-equilíbrio das percepções – numa perspectiva construtivista – a ofensiva de charme de Pequim enfrenta sérios desafios e limitações.
O primeiro obstáculo nasce da percepção de que a China está a preparar-se para ascender degrau a degrau ao pináculo do poder do sistema internacional para disputar a liderança com os EUA. Os receios motivados pelas analogias que são feitas ao que sucedeu no século XIX durante a era do imperialismo multi-polar levam a que o dilema de segurança (“preparar-se para atacar antes que o adversário se torne demasiado poderoso) prevaleça, especialmente num mundo em que, apesar do reforço dos poderes de organismos multilaterais como a OMC e do aumento da interdependência, a “anarquia” e no sistema inter-estados não desapareceu.
Na política externa, a obsessão em seguir à linha a lógica “soberanista” e de “não interferência” tem contribuído para uma imagem negativa da China perante as opiniões públicas – sobretudo as “consciências ocidentais” – que consideram que Pequim pode e deve fazer mais para ajudar a resolver o problema no Darfur ou a situação em Myanmar.
Calcanhar de Aquiles doméstico
Enquanto poder normativo a China tem assim várias limitações. Ou seja Pequim não tem a capacidade para controlar e transformar a agenda política global e legitimar uma nova ordem internacional. Por outras palavras, o “Consenso de Pequim” não surge como uma receita alternativa como modelo com aspirações de ser aplicável à escala global – quanto muito é atractivo para países em desenvolvimento na América Latina, África e Ásia.
Por outro lado, as fragilidades na política doméstica constituem igualmente um factor de erosão dos esforços da ofensiva de charme de Pequim. A imagem de um país em que crescem as desigualdades, há sérios limites à liberdade de expressão, a corrupção é endémica e os problemas ambientais são mais que muitos constitui um outro grande obstáculo. A recente crise no Tibete e as reacções a nível internacional foi um bom exemplo de como um rastilho pode queimar parte do trabalho que foi desenvolvido para promover uma imagem de um regime que apesar de ser autoritário é benigno. Em sentido inverso, a forma humana e transparente como o governo tem lidado com a tragédia de Sichuan indica que as autoridades conseguem também reagir a um cenário de crise, neste caso de catástrofe, de maneira eficaz, mobilizando os esforços necessários e sem criar barreiras no acesso à informação.
Da árvore para a floresta
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