Sunday, September 14, 2008

A crise na Geórgia e as relações sino-russas

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 11/09/2008

José Carlos Matias

As parcerias estratégicas são testadas em momentos-chave. Por exemplo, o eixo Mosco-Pequim foi posto à prova durante a Cimeira da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), no final de Agosto em Dushubane, no Tajiquistão. Poucos dias depois da Rússia ter reconhecido a independência das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, a OCX esteve reunida, numa momento em que Moscovo estava isolada internacionalmente a propósito do passo inesperado de oficializar o reconhecimento das duas repúblicas que formalmente fazem parte da Geórgia. Os parceiros da Rússia nesta organização inter-governamental, a China e as quatro antigas repúblicas soviéticas da Ásia central – Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Cazaquistão – emitiram uma declaração comum em que é realçado o papel “activo da Rússia na região”, mas salientam também que desejam que a crise seja resolvida por meios pacíficos e que deve ser tida em conta a integridade territorial das partes envolvidas, não sendo, assim, dado o aval ao reconhecimento da independência das repúblicas russófilas. A declaração não surpreende, mas é ilustrativa do posicionamento da China no plano internacional e a forma como as quatro repúblicas se encaixam entre os vizinhos gigantes.

O que quiseram dizer?

Alguns analistas concluíram que em Dushane teve início um novo período de algum resfriamento das relações entre a Rússia e a China. Outros consideram que a ambiguidade e a neutralidade da China era esperada em Moscovo, pelo que a declaração não passou de um epifenómeno que não irá alterar uma aproximação em curso inevitável. Em pleno movimento de placas tectónicas na geopolítica, é difícil prever quais serão os reajustamentos, mas será no mínimo manifestamente exagerado falar de uma nova Guerra Fria ou de um qualquer novo cisma sino-russo.
Em primeiro lugar, Pequim não poderia agir de outra maneira. Por várias razões. Desde logo, a resposta russa ao aventureirismo irresponsável de Mikeil Saakashvili, que aconteceu no dia em que o mundo olhava para Pequim, para a cerimónia de abertura, incluiu a incursão em território da Geórgia, além dos limites territoriais da Ossétia do Sul.

A coerência de Pequim

Uma escalada do conflito entre Moscovo e Tiblissi vai claramente contra os interesses da China no plano internacional e cria um precedente perigoso. Do ponto de vista da política externa chinesa, o passo dado pela Rússia de reconhecimento das repúblicas separatistas e um cenário de aumento da tensão entre Moscovo e o Ocidente poderão levar a um desequilíbrio no sistema internacional de segurança. Uma situação que não condiz com a estratégia de emergência pacifica delineada por Pequim, que necessita de um ambiente externo estável. Um cenário de uma nova Guerra Fria poderá (poderia) forçar a China a tomar partido em algumas situações sensíveis, o que vai contra o interesse nacional chinês, tanto mais que no processo de desenvolvimento económico, a China precisa tanto dos mercados, capitais e tecnologia dos EUA como dos recursos naturais e energéticos russos.
Rana Mitter, da Universidade de Oxford, sublinha que “uma nova Guerra Fria iria enfraquecer as instituições globais onde a China tem vindo a ganhar peso e influência”. Ou, nas palavras de Xia Yishan, do International Studies Institute, um “think tank” do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, “a China prefere claramente um mundo em que as grandes potências não pisem as linhas vermelhas”.
Por outro lado, é óbvio que a RPC nunca poderia apoiar a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia, uma vez que defende há décadas os princípios da integridade territorial e da não ingerência – pedras de toque no posicionamento chinês no mundo que servem de base para toda a cooperação internacional. Nesse sentido, uma declaração em que a China apoiasse Moscovo colocaria Pequim perante um dilema moral e uma duplicidade difícil de entender face aos problemas internos que tem em Xinjiang e no Tibete.

Um teste à natureza da OCX

Naturalmente que há outras formas de olhar para o assunto. Se o Ocidente – leia-se os EUA – centrarem de novo as atenções e esforços numa Rússia neo-imperial que constitui um perigo para a estratégia de expansão da NATO, a “Ameaça-China” sai do radar das prioridades de Washington. Uma situação que convém a Pequim. Além disso, foi visível na Cimeira da OCX a influência da China sobre as antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso na declaração conjunta. Fazendo parte do que Moscovo considera o seu espaço natural de influência, Tajiquistão, Uzbequistão, Cazaquistão e Quirguistão preferiram não acompanhar a Rússia no apoio à independência das repúblicas separatistas. A própria OCX, que foi formada em 2001 - na sequência do Shanghai Five – tem como inimigos o terrorismo, o separatismo e extremismo.
Tudo isto entronca na forma diferente como a China e a Rússia encaram a OCX: ao passo que os chineses olham para esta organização como mais um instrumento multilateral em que podem criar estabilidade na vizinhança, controlar o apoio de grupos fundamentalistas ao separatismo uigur, mitigar disputas bilaterais e garantir acesso a fontes de energia e matérias primas, Moscovo procura garantir a manutenção da esfera de influência militar e económica numa zona crucial em termos geo-estratégicos.
Mark N. Katz, analista do site Eurasia.net, considera que não será surpreendente se Moscovo comece a desvalorizar a OCX, passando dar primazia a outros instrumentos como a Comunidade de estados independentes ou a Organização do Tratado Colectivo de Segurança.

Algo mudou?

Em todo o caso, é ainda cedo para perceber o impacto da Cimeira de Dushubane nas relações sino-russas. Yu Bin escreve no Asia Times Online que, na verdade, no essencial pouco muda.
Em primeiro lugar, a neutralidade (ambiguidade estratégica) de Pequim vem no seguimento da atitude chinesa no plano externo desde os anos 1980. Em segundo, a declaração mostra que a OCX está ainda muito longe de ser uma NATO do Oriente, como alguns autores previam. Na verdade, é uma comunidade de países que “dormem na mesma cama, mas com sonhos diferentes”. Na Carta da OCX não há qualquer obrigação de um estado membro comprometer-se militarmente com os restantes da mesma forma que existiu no Pacto de Varsóvia ou existe na NATO.
Tendo em conta tudo isto, Yu considera que “a declaração até tem bastante significado para os russos, na medida em que apoia o papel de promoção de paz e cooperação de Moscovo na Região”. Ou seja, para a Rússia a ausência de apoio ao reconhecimento da independência era esperada e a declaração satisfaz a diplomacia russa. Yu Bin, professor na Universidade do Ohio, nos Estados Unidos, assegura por isso que a declaração e a Cimeira de Dushubane não assinalava, de modo algum, “o fim da parceria estratégica com a China”, lembrando que ao longo dos últimos 30 anos Pequim tem tido uma abordagem bastante sofisticada e ponderada. A RPC não costuma tratar os outros estados segundo a lógica dual estado amigo-inimigo, preferindo ser pragmática e analisar as situações caso-a-caso.
Quer isto dizer que Pequim agirá de acordo com os movimentos das placas tectónicas na Eurásia. Sendo certo que beneficia de um ambiente estável sem movimentos bruscos e em que possa jogar quer com o reforço das instituições multilaterais, quer com os mecanismos de consulta dos diálogos bilaterais. É também por isso que, pelo menos no curto e médio prazo, a China é uma potência emergente que contribui para um ambiente de estabilidade e segurança na Ásia Oriental e na Eurásia.