Sunday, March 28, 2010

A China face ao mundo: Multipolaridade e Multilateralismo

Working Paper apresentado no V Congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política,

Universidade de Aveiro, 4-6 de Março de 2010


A postura da China no sistema internacional tem sofrido alterações significativas nos últimos anos. Se no início dos anos 1980 Deng Xiaoping aconselhava a China a não procurar tomar a dianteira nas questões internacionais e a ter uma atitude modesta na exposição das suas capacidades, em 2009, temos uma RPC que se assume gradualmente como uma potência (daguo) numa ordem internacional em transição do unipolarismo pós-Guerra Fria para um cenário de um mundo complexo, interdependente, com novos pólos (e por isso tendencialmente multipolar).
Neste ensaio, procuramos olhar em perspectiva para o percurso da China nas relações internacionais desde o início da Era da Reforma, com especial incidência sobre as últimas duas décadas. A forma como o país tem abraço, participado e estado na origem de instituições e mecanismos multilaterais tem suscitado um debate aceso na academia sobre as intenções e os interesses da China no contexto da ordem mundial Pós-Guerra Fria. Numa primeira fase sobressaía uma valorização da multipolaridade e de um discurso público mais próximo da lógica realista. Nos últimos anos, contudo, retórica e em parte a acção foram afinada num sentido de maior valorização do multilateralismo, numa abordagem aparentemente mais liberal-institucionalista.

Do multilateralismo e da polaridades


Na literatura das relações internacionais, multilateralismo, bilateralismo ou imperialismo são conceitos que servem de base à forma como as relações entre os estados são organizadas. Na perspectiva de John Ruggie, o multilateralismo distingue-se de outras formas de organização sobretudo devido a três características principais:indivisibilidade, princípios gerais de conduta e reciprocidade difusa. O multilateralismo enquanto instituição difere meramente de actividades ou organizações multilaterais, representando uma forma particularmente exigente de interacção para os actores envolvidos. O multilateralismo é assim a chave para uma particpação plena de todos os países no sistema de tomada de decisões (governance) dos assuntos internacionais, sendo uma garantia de legitimacia e democracia.

A multipolaridade indica a distribuição do poder de forma relativamente equitativa entre mais de dois pólos. As opiniões sobtre a estabilidade de um sistema multipolar diferem entre autores da chamada escola realista das teorias das relações internacionais. Os realistas clássicos, como Hans Morghenthau ou E.H. Carr tendem a considerar que os sistemas multipolares são mais estáveis que os bipolares na medida em que as principais potências poderão aumentar o seu poder relativo através de alianças e conflitos secundários sem ter de desafiar directamente os outros poderes. Por outro lado, os autores neorelistas, como Kenneth Waltz[1], invertem essa perspectiva e consideram que os estados num sistema multipolar – seguindo o dilema de segurança - podem ao concentrarem os seus receios em várias outras potências e ao analisarem de forma desadequada as intenções desses outros estados, desnecessariamente comprometer a sua segurança. Ao passo que numa estrutura bipolar, centram as suas atenções e esforços nos receios face a uma outra potência. Na análise sobre as polaridades no sistema internacional, ao passo que existe um consenso entre estudiosos sobre a natureza bipolar da estrutura inter-estatal que subsistiu entre o final da II Guerra Mundial e a implosão do Bloco de Leste, nos últimos 20 anos tem havido um debate acesso sobre a natureza da distribuição de poder. O debate começa desde logo pelas noções de poder e a sua mensurabilidade.

Enquanto tradicionalmente se utilizam dados ligados ao “hard power”, nesta outra forma de olhar para a distribuição das capacidades devem ser usados indicadores de “soft power”. A avaliação do peso da leveza desse poder implica uma análise sobre aspectos ligados à cultura, ideologia e acção diplomática, entre outras vertentes. O académico norte-americano Joseph S. Nye carimbou este conceito de forma veemente no seu livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics”[2]. Em traços, gerais o “poder macio” diz respeito à capacidade para alguém conseguir os seus objectivos no plano internacional sem usar métodos de coação ou através de pagamentos. Ou, de forma mais incisiva, “o soft power reside na capacidade para influenciar as preferências dos outros, de liderar pelo exemplo e atrair os outros a fazer o que se pretende que eles façam”.
Sem entrar em detalhe neste debate, há sinais rigorosos que nos indicam que existiu um “momentum” unilateral na década de 1990 e no início do século XXI corporizado pelas intervenções militares no Kosovo, Afeganistão e Iraque. No entanto, se em termos militares ainda hoje se deva olhar para o mundo de forma ainda tendencialmente unipolar – dada a presença militar dos EUA no mundo e tendo em conta que as despesas militares norte-americanas representam cerca de metade dos gastos mundiais com o sector militar – ao nível económico, o desenho da distribuição de poder é tendencialmente multipolar.
Mas que tipo de multipolaridade emergirá? Certamente que o EUA manterão a supremacia militar durante boa parte deste século. Economicamente, o seu papel hegemónico está a sofrer uma erosão acelerada, mas será provavelmente ao longo de todo o século a maior economia mundial em termos relativos, ou seja no rácio PIB per capita - embora deva ser, de acordo com várias estimativas, ultrapassado pela China em termos absolutos, eventualmente ainda durante a primeira metade do século.

Além de estarmos num momento de transição uni-multipolar, uma outra característica fundamental e fundacional da ordem vigente é a interdependência. Uma interdependência complexa, que se faz notar sobretudo em três esferas: económica, energética e ambiental. Como Giovanni Grevi bem nota, a combinação de uma ordem eminentemente multipolar com um aprofundamento da interdependência moldará o curso das relações internacionais neste século[3]. Grevi cunha o conceito Interpolaridade para descrever a Multipolaridade na Era da Interdependência. Essa interdependência leva ao recurso constante a fora e instituições de cariz multilateral para que os intersses divergentes que afectam todos os actores no sistema sejam dirimidos. A interdependência exige a criação de um catálogo de regras e procedimentos comummente aceites, num sistema inter-estatal ainda anárquico. Esta situação faz com que seja provavelmente inevitável reforma e melhor adequar e equipar as organizações multilaterais que no futuro poderão “governar” a interdependência multipolar, nomeadamente as Nações Unidas, FMI, Banco Mundial, G20 ou G8.
A questão é jogada não apenas ao nível global, mas também regional. E no caso da China, do a que irá suceder na região Ásia Pacífico. Nesta fase, mais que uma potência global, a China é um poder regional. Ao nível da segurança, a Ásia Oriental é uma região eminentemente bipolar em que uma potência emergente – a China – procura criar um arco de estabilidade, prosperidade e segurança, numa zona que foi dominada pelos EUA nas últimas seis décadas e onde Washington tem uma presença militar fulcral.


Da prudência à socialização

Após três décadas em que a China se foi alinhando no contexto da estrutura internacional bipolar, oscilando entre os “Dois Campos” e os “ Três Mundos”, nos anos 1980 a China iniciou uma outra forma de estar no mundo com a ascensão ao poder de Deng Xiaoping. Sob a sua liderança, a China substituiu o radicalismo de Mao Zedong por uma nova abordagem pragmática das políticas interna e externa, que tinha como base a nova raison d’être do regime chinês: o desenvolvimento e a modernização da economia.
Na arena internacional Pequim iniciou um caminho de descolagem da aliança táctica e tácita com os EUA, que tinha sido feito no princípio dos anos 70, após a ruptura com a URSS, para abraçar um novo modelo ancorado em dois conceitos que ainda hoje são apresentados como o âmago da política externa chinesa: Paz e Desenvolvimento, seguindo a máxima de Deng Xiaoping: «Quanto maior for o crescimento da China, maiores serão as hipóteses de preservar a paz mundial». Além do binómio Paz e Desenvolvimento, Pequim proclamou igualmente no início dos anos 80 a intenção de manter uma política externa independente, conduzida para satisfazer as necessidades internas de um país que se levantava depois de ter vivido em constante convulsão durante os três primeiros quartéis do Século XX. Este objectivo será tanto mais compreensível se se tiver em conta que existem dois princípios basilares que acompanham a política externa chinesa desde os tempos imperiais: a centralidade e autonomia .
Em Pequim, defesa de um mundo com vários pólos de poder tem origem no apelo de Mao Zedong aos países em desenvolvimento para se levantarem contra as nações capitalistas. Esta posição ganhou contornos mais significativos após o cisma sino-soviético e a defesa da criação de novos pólos de poder de contrapeso ao “imperialismo” americano e ao “social-imperialismo” soviético.

Com Deng a China começara a descortinar um mundo em que a estrutura bipolar da Guerra Fria iria dar lugar a uma multipolaridade da distribuição de poder no sistema internacional.
Após o final da Guerra Fria – e os incidentes de Tiananmen de 1989 - a China deparou-se como vários desafios. . No plano internacional, a China enfrentou as duras críticas da comunidade internacional, bem como sanções decretadas por alguns dos seus principais parceiros comerciais, como por exemplo o embargo à venda de armas decretado por Washington e Bruxelas e que ainda hoje está em vigor. Simultaneamente, o mundo bipolar dava lugar a uma nova ordem internacional ainda algo difusa, mas em que sobressaía, por um lado, a natureza anárquica do sistema e, por outro, a hegemonia dos EUA.
Em 1991, Jiang Zemin resumia a fórmula desenhada por Deng para enfrentar este ambiente, citando a famosa directiva dos 28 caracteres: manter a cabeça fria para observar, ser prudente nas reacções, ter uma atitude firme, esconder as capacidades, saber manter um baixo perfile, nunca tentar tomar a dianteira e ser capaz de alcançar algo.
Estas foram as traves mestras para os anos que se seguiram ao fim do mundo bipolar. Esta máxima denota não apenas a necessidade de não deixar sobressair as ambições da China, mas também reafirma uma estratégia de longo prazo de construção de um poder nacional compreensivo (zhonghe guoli), com vista a maximizar as opções da China no futuro .
Alguns anos mis tarde, em 2000, Jiang proferia uma afirmação de defesa não só da multipolaridade, mas também de rejeição velada do modelo dominante da globalização hegemónica com origem nos EUA:

“The world is multi-colored. Just as the universe cannot have only one color, so too can’t the world just have only one civilization, one social system, onde developmental model, or one set of values”[4].

No início dos anos 1990, enquanto parecia ansiar por um mundo multipolar, a China ia participando de forma mais activa em actividades multilaterais. No entanto, como nota Avery Goldstein, essa participação simbolizava sobretudo um estatuto formal de um país que deve ser incluído nos processos de deliberação em questões regionais ou de importância global. Sobressaía, claramente, ainda uma postura prudente face às instituições multilaterais.

“It’s rather reluctant involvement reflected a scepticism that multilateralism could serve China’s interests and a concern that such forums, especially in the Asia-Pacific, were subject to manipulation by the U.S. and Japan to encourage others to“gang up” against China[5]”.

A crise no estreito de Taiwan em 1995-1996 trouxe de novo à tona a percepção da China enquanto ameaça militar e os receios de um conflito com os Estados Unidos. Contudo, à semelhança do que sucedeu após Tiananmen, foi novamente após um momento de crise com repercussões negativas sobre a imagem do país no exterior, que a China deu um salto qualitativo na forma de abordar os mecanismos multilaterais.
Xu Xin salienta que após a crise no estreito, Pequim enfatizou a necessidade de ter uma postura firme que produza resultados. Foi nesse contexto que a liderança chinesa lançou uma rede ampla de parceiras estratégicas e acordos de cooperação de cariz regional e multilateral. No final da década de 1990, a China abandonou uma atitude meramente passiva e reactiva face às instituições multilaterais para adoptar uma postura positiva e proactiva.
Evan S. Medeiros e M. Taylor Fravel consideram que a uma série de contactos, acordos e parcerias que reflectem uma nova flexibilidade e sofisticação no seu comportamento enquanto actor global. Na sua perspectiva, a postura chinesa tem tido sempre como pano de fundo a intenção de promover os seus interesses económicos, reforçar a sua segurança e limitar a influência dos EUA nos países próximos da China, em especial na Ásia Central e no Sudeste Asiático.
Deste modo, a China decidiu encetar um caminho mais amplo e complexo na sua relação com o mundo, baseado numa atitude multifacetada e multidireccional.

Estabilidade e Boa Vizinhança

As relações da China com a Ásia Central, o Sudeste Asiático e África são exemplos de mecanismos regionais e multilatereais criados por Pequim, denotadoe atitude proactiva e sofisticada.

Em 1996, foi criado o «Shanghai Five» uma organização – cuja designação derivou do facto de a cimeira inaugural ter sido realizada em Xangai – que reunia a China, a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão, com o objectivo de reforçar a confiança mútua, a cooperação em geral e, em particu­ lar, tratar de assuntos ligados à definição de fronteiras. Quatro anos mais tar­de, este grupo foi alargado ao Usbequistão, passando a incluir todas as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central e passou a denominar-se Organização de Cooperação de Xangai (SCO).

No aspecto regional, há que sublinhar também o aprofundamento das re­lações com a Ásia Oriental, em especial com o Sudeste do continente. Ao ní­vel político-institucional, a China participa no ASEAN Regional Forum (ARF), que junta 23 países: as nove nações da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) mais dez parceiros de diálogo – Austrália, Canadá, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, EUA, Índia, Japão, Mongólia, Nova Zelândia, Rússia e União Europeia (UE) – e a Papua Nova Guiné, como observador.

Por outro lado, Pequim participa no processo ASEAN+3, iniciado em 1997, que junta os Estados-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático e três países do Nordeste Asiático – a China, a Coreia do Sul e o Japão. A China tem também sido desde a primeira hora um actor importante no Asia Europe Meeting (ASEM), que começou por juntar a União Europeia e o bloco ASEAN +3.

Ainda na década de 1990, Pequim optou por uma aproxima­ção aos países de África, Ásia e América Latina, baseada nos conceitos de paz e desenvolvimento, e guiada, em grande medida, por interesses e necessidades ao nível de matérias-primas e recursos energéticos. Em traços gerais, Pequim apoia os esforços das nações africanas em evitar qualquer interferência externa na resolução das suas disputas de modo pacífico e apoia igualmente a União Africana e outras organizações regionais que promovam a paz, a estabilidade e o desenvolvi­mento.

Para concretizar estas intenções, em Outubro de 2000 foi estabelecido o Fórum de Cooperação China-África, que junta os 45 Estados do continente africano que reconhecem Pequim como único representante da China e que rejeitam qualquer relação com o Governo de Taipé. Este mecanismo procura enquadrar e coordenar a cooperação em várias áreas: entre outros aspectos, destacam-se a agricultura, a construção de infra-estruturas, os recursos hu­manos, os recursos energéticos e as matérias-primas.

Em 2003, foi criado um outro instrumento, que surge de uma iniciativa da China e que procura potencializar os laços económicos, sobretudo com países em desenvolvimento. Com sede na Região Administrativa Especial de Macau, foi lançado o o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, que junta a China e que têm relações com a RPC: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Timor-Leste – ou seja todos à excepção de São Tomé e Príncipe.
Joshua Kurlantzick enquadra este vigor da diplomacia chinesa numa estratégia de amplo charme.”Charm Offensive”[6]. Primeiramente, nas relações bilaterais e nos fora multilaterais, Pequim enfatiza a lógica de “win win” (jogo de soma positiva) nas relações internacionais, contrariando a percepção de “jogo de soma negativa” típico da Guerra Fria. Em segundo, contrariamente ao intervencionismo norte-americano, a China acena com o princípio da não ingerência, seguindo a fórmula enunciada por Zhou Enlai dos Princípios da Coexistência Pacífica. Além disso, a RPC surge no plano internacional como um modelo de nação em desenvolvimento em que o processo é controlado a a partir do topo do estado, evitando uma abertura abrupta dos mercados que tantos estragos causou em países latino-americanos e do sudeste asiático que seguiram as receitas do “Consenso de Washington”. Estas três faces da China atraem sobretudo os países em desenvolvimento, que procuram alternativas ao modelo de cooperação dos EUA e da Europa.

Contra a percepção de ameaça


Na sua acção externa, a China tem procurado fazer eco da tese do “desenvolvimento pacífico” (hépíng fāzhǎn), que sucedeu no jargão oficial à “emergência pacífica (hépíng juéqǐ), abandonada por causa das implicações do termo “emergência”. O objectivo desta tese (e postura) é dissuadir os efeitos da recorrente tese da “China Ameaça” que tanto caminho fez (e ainda faz) nos EUA, Taiwan e Japão. No fundo trata-se de projectar uma imagem da China enquanto poder responsável. O objectivo é que mantendo uma postura construtiva e proactiva, a China possa estar no século XXI com a imagem de um grande poder responsável e que com o passar do tempo a chamada teoria da China Ameaça possa ser derrotada.
Segundo Susan Shirk, especialista em assuntos chineses e ex adjunta do vice-secretário de Estado dos EUA durante a administração de Bill Clinton, a tese da “emergência pacífica” assenta em três pilares: acomodação com os países vizinhos, ser um “player” em organizações multilaterais e usar laços económicos para ganhar a amizades internacionais. Em todos estes aspectos a China tem sido relativamente bem-sucedida. No primeiro pilar, como referimos, foram dados passos de gigante na criação de um ambiente de paz e co-prosperidade na vizinhança (apesar dos problemas com Taiwan e das sempre complexas relações com o Japão). No segundo, além da citada dinâmica com a ASEAN, a China lançou com a Rússia a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) que junta ao “urso” e ao “dragão”, as cinco antigas repúblicas soviéticas: Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Turquemenistão. A estratégia multi-direccional tem sido visível também na medida em que a China cria mecanismos de diálogo intensos com um grupo de países como são os casos (todos com as suas especificidades) do Fórum China-África, do Fórum para a Cooperação entre a China e os Países Lusófonos (Macau) e dos laços cada vez mais fortes (complexos) com a União Europeia. Fora do plano do multilateralismo mais “regional”, além de ter aderido à Organização Mundial de Comércio (OMC), Pequim tem participado cada vez mais em missões de manutenção de paz das Nações Unidas. No que diz respeito a “usar laços económicos para criar amizades internacionais”, a cooperação com África, com a ASEAN ou os acordos de livre comércio com a Austrália e a Nova Zelândia são alguns exemplos claros desse princípio .
A China tonara-se assim num país “born-again regional multilateralist”, nas palavras de Susan Shirk. Ao envolver-se de forma proactiva nas instâncias multilaterais, a China sinaliza que está a assumir-se como um actor responsável que se rege por regras internacionais, numa altura em que os EUA mostravam sobretudo uma face unilateralista e menos comprometida com as organizações multilaterais.


Multilateralismo com características chinesas


A dicotomia unilateralismo-multilateralismo começou a ser explorada pela China em meados dos anos 1990, mas foi após a ascensão ao poder de Hu Jintao que foi ainda mais valorizada. Numa carta enviada ao então secretário-geral da ONU Kofi Anan, Hu sublinhou que o mundo apenas poderá lidar com os desafios globais se seguir a via do reforço da cooperação internacional e o caminho do multilateralismo. Como ponto de partida, Pequim defende um multilateralismo com base na ONU. O ex ministro dos Negócios estrangeiros Li Zhaoxing defendeu que a ONU se tornou na plataforma comum para todos os países participarem no rpcesso de tomada de decisões global, promover a democratização e legalização das relações internacionais e preservar os interesses comuns.
A China também encara o multilateralismo como um princípio organizador compatível com os processos de multipolarização e globalização. Na verdade, o reforço do multilateralismo pode ser usado para democratizar a hegemonia dos EUA e domar os impulsos unilaterais de Washington.
Ou seja, trata-se de cooperar para maximizar o posicionamento na estrutura de poder internacional.
Um artigo no Diário do Povo explicita de que forma a China encara o multilateralismo como forma de alavancar a posição dos países emergentes:

“(…) only through partaking in the multilateral institutions, can emerging economies possess the likelihood to alter the existing international power structures and operating rules. The transfer and redistribution of the global power will be the only access to globalization. The multilateral mechanism will help express this common aspiration of the emerging economies”[7].

Este redireccionamento tem sido visível ao nível da presença cada vez mais significativa do conceito de multilateralismo (duobian zhuyi) no discurso oficial e na investigação desenvolvida por académicos na China. Leif-Eric Easley salienta que tem havido desde o início da década nas revistas científicas da China uma maior saliência do estudo sobre o multilateralismo e não tanto em torno da multipolaridade (duojihua) .
Existem várias razões para esta mudança de ênfase. Easley destaca que, na verdade, a China tem beneficiado em grande medida de um sistema de uma superpotência e várias grandes potências, que tem permitido à China centrar as atenções e esforços no desenvolvimento económico.
Por outro lado, à medida que a China se assume como potência poderá não estar tão interessada na multipolarização, se isso significar a emergência dos seus rivais, como por exemplo a Índia ou a aentrada do Japão como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Há que também ter em conta que é mais fácil projectar uma imagem positiva e construtiva a nível internacional falando de multilateralismo do que multipolaridade. Como nota Easley, o discurso sobre a multipolaridade carrega consigo traços de anti-americanismo e pode levantar preocupações entre outros estados sobre eventuais intenções revisionistas da China.
Além do mais, a valorização do multilateralismo está mais em consonância com a retórica do jogo de soma positiva, emergência pacífica e mundo harmonioso.

Conclusão

Pequim tem sido capaz de fazer uso dos instrumentos do soft power, com uma ofensiva diplomática à escala global sem precedentes, multifacetada e multidireccional. Desde meados dos anos 1990 que a China tem participado em organizações regionais, inter-regionais e multilaterais, tendo mesmo estado na dianteira em algumas dessas iniciativas.
O ímpeto multilateral da China é tributário do seu interesse nacionais e de uma certa perspectiva sobre o ambiente regional e a ordem global. A febre multilateralista de Pequim ajuda a projectar a imagem de cidadão responsável e construtivo no sistema internacional que produz soluções de soma positiva. Assim, a China espera simultaneamente maximizar a sua esfera de influência e mitigar a percepção do país enquanto ameaça. Como referimos aqui, multipolaridade e multilateralismo são conceitos que se complementam, num mundo cada vez mais interdependente. O sistema é menos unipolar e estar a caminhar para a multipolaridade - ou pelo menos para uma situação de uma superpotência como vértice de uma pirâmide em que outros actores assumem um papel cada vez mais relevante. Sendo assim, é normal que os vários actores olhem para as instituições multilaterais como instrumentos de reforço do seu poder relativo e como mecanismo que poderão reger o convívio de um sistema inter-estatal em mutação. Uma das questões que mais tem animado o debate em curso é se esta postura tem como força propulsora os interesses nacionais apenas ou ambições normativas. Sem certezas, podemos inferir, com Thomas G. More, que o multilateralismo resulta de uma escolha estratégica, no sentido e que em alguns casos a China promoveu o multilateralismo como veículo de integração e noutros como forma de prevenir que este se tornasse num instrumento contra os seus interesses.




[1] Ver Kenneth N. Waltz, Theory of International Politics. McGraw Hill. New York: 1979.

[2] Joseph S. Nye Jr, Soft Power: The Means to Success in World Politics by Joseph S. Nye. New York, Public Affairs, 2004.

[3] Giovanni Grevi, The Interpolar World: a New scenario, Occasional Paper - n°79, June 2009, Institute for Security Studies.

[4] Citado por Yong Deng, China’s Struggle for Status”, Cambridge University Press, New York, 2008, p.45.

[5] Avery Goldstein, “The Diplomatic Face of China’s Grand Strategy : A Rising Power’s Emerging Choice”, China Quarterly, 2001

[6] Joshua Kurlantzik, “Charm Offensive: How China's Soft Power Is Transforming the World”, Yale University, New York, 2007.

[7] Li Hongmei, “China's embrace of multilateral institutions: from a have-to to an active diplomacy”, People’s Daily, June 23, 2009. Disponível em http://english.people.com.cn/90002/96417/6684316.html.