Monday, July 28, 2008

De Pequim a Nova Deli: para além da Chíndia

José Carlos Matias

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 24-07-2008

É um lugar-comum enunciar que este vai ser o século da Ásia, num processo liderado pela China e pela Índia. Os dois “gigantes asiáticos”, como se lê amiúde, preparam-se para representar, em meados deste século, metade da riqueza produzida no mundo, dizem os especialistas. Alguns, como o economista e político indiano Jairam Ramesh, falam mesmo no conceito de Chíndia, um mercado bi-nacional que se complementa, juntando a “fábrica” (hardware) ao “escritório” (software). Enquanto slogan, o conceito agrada, mas a realidade mostra à saciedade factores que indiciam potencialidades de competição e divergência de interesses.
Em todo o caso, o relacionamento tenderá a ser cada vez mais complexo: em vários casos complementar, noutros competitivo. Nesta equação há que contar com duas variantes fulcrais – Estados Unidos e Paquistão – e é conveniente não olhar para este processo apenas com os óculos realistas do jogo de soma negativa.

De Buddhabhadra à guerra sino-indiana

A História traz-nos ecos de sinais contraditórios. Desde logo, os laços culturais e comerciais que remontam ao século V a.C. Contudo, foi a partir do século I, com a introdução do budismo da Índia na China, que vários monges e estudiosos indianos se estabeleceram em território chinês, como foram os casos mais conhecidos de Buddhabhadra, fundador do primeiro mosteiro Shaolin, em Henan, ou Bodhidharma que divulgou no século V a escola do Budismo Zen (Chan). Em simultâneo, desenvolvia-se o comércio sino-indiano.
Mais tarde, as relações entre as duas nações ficaram marcadas pela guerra sino-gurka (séc. XVIII) e pelo conflito sino-sikh (séc. XIX). Após a independência da Índia (1947) e o triunfo da Revolução Comunista na China (1949), o clima entre o primeiro-ministro Nehru e o presidente Mao era cordial. Embora com sistemas políticos diferentes, os dois países tinham-se libertado de forças imperialistas e procuravam assumir um papel numa “Ásia ressurgente”, como afirmava o chefe do governo indiano.
A breve Guerra Sino-Indiana de 1962 - devido a disputas fronteiriças – mudou a face do relacionamento que daí em diante passou a ser marcado pela desconfiança e pelos cálculos da Guerra Fria, ao mesmo tempo que a China apoiava o Paquistão nos conflitos armados com a Índia. O Tibete, que funcionara como “buffer zone” entre os dois países, estava agora sob o domínio completo de Pequim, o que representava mais um ponto de conflito entre os dois países.

A encruzilhada

Volvidos mais de 40 anos sobre a pior década nas relações sino-indianas, o contexto alterou-se de forma extraordinária. Há 20 anos a visita do então primeiro-ministro indiano Rajiv Gandhi abriu uma nova página, seguido por outros passos que foram paulatinamente abrindo o caminho para um novo tipo de relacionamento, já fora dos constrangimentos da Guerra Fria. O mundo agora passa por um processo de transição da hegemonia dos EUA a numa realidade “Pós-Americana” (Fareed Zakaria), tendencialmente multipolar. E claro que Pequim e Nova Deli são os dois pólos mais importantes na Ásia.

O jogo de soma positiva

Ao nível governamental, as iniciativas apontam para um caminho de reforço dos laços económicos e comerciais. Durante a visita realizada este ano pelo primeiro-ministro Manmohan Singh à China foi assinado um documento estratégico, intitulado “Uma visão comum para o Século XXI”, em que os líderes dos dois países se comprometem a promover a paz, o desenvolvimento e a harmonia.
Do ponto de vista económico, o comércio bilateral aumentou 50 por cento em 2007 para um total de 38 mil milhões de dólares. No primeiro trimestre deste ano, a China tornou-se mesmo no primeiro parceiro comercial da Índia (a seguir ao bloco europeu). O investimento também tem aumentado substancialmente. Pequim tem entretanto procurado insistir na necessidade de um acordo comercial que possa mesmo dar origem um acordo de comércio livre. Nesse cenário, as duas partes formarão a maior zona de livre comércio do mundo, abrangendo população de mais de 2,3 mil milhões de pessoas.
A narrativa optimista – bastante promovida por Pequim – aponta para as infindáveis potencialidades deste cenário, salientando os aspectos complementares entre as duas economias. Afinal, a Índia destaca-se pelos avanços nas novas tecnologias (com seu “Silicon Valley” em Bangalore) face a uma China onde predominam as indústrias de mão-de-obra intensiva.

Modelos díspares

No entanto, a realidade é bem mais complexa. M. D. Nalapat, especialista em geopolítica na Academia de Manipal, na Índia, considera que “a relação é mais competitiva que complementar”, à medida que “a China necessitar de ultrapassar a vantagem indiana no software e na economia do conhecimento e a Índia precisar de se tornar numa plataforma manufactureira para garantir um nível elevado de emprego da mão-de-obra pouco qualificada”.
Todo este processo de emergência económica decorre de formas bastante diferentes nos dois países. Na China, o crescimento é supervisionado por um governo poderoso que tem toda a margem para decidir e executar a construção de infra-estruturas, num sistema ainda misto de “socialismo de mercado” e de predominância do sector público (não obstante os grandes avanços do sector privado desde 1978). Já na Índia, o crescimento económico avança não por causa, mas apesar do estado. Além do papel liderante dos serviços, das indústrias de capital intensivo e da economia do conhecimento, o PIB indiano tem uma porção significativa afecta ao consumo privado (67 por cento), ao passo que na China essa fatia é de 42 por cento. O economista Yasheng Huang argumenta ainda que “as companhias indianas fazem uso do seu capital de uma maneira muito mais eficiente que as empresas chinesas, em parte porque não têm acesso a um fornecimento quase ilimitado de capitais”.

O “amigo” americano

Simultaneamente, outros factores como o sistema político democrático, a relação cada vez mais próxima com os EUA e uma pirâmide demográfica com uma larga base de população jovem podem ser multiplicadores do “milagre económico indiano”. Contudo convém lembrar que a economia indiana ainda representa apenas um terço da chinesa e que apesar de todos os problemas (alguns deles estruturais) a China está bastante à frente da Índia em termos de níveis de literacia, igualdade de género, infra-estruturas, combate à pobreza e atracção de investimento externo.
Ao nível da segurança regional, o acordo sobre energia nuclear civil firmado entre a Nova Deli e Washington causa incómodo em Pequim. A imprensa estatal chinesa tem alertado para o facto deste acordo poder enfraquecer o regime internacional de não-proliferação nuclear. Além disso, correm fortes rumores que os EUA poderão mesmo vir a transferir um importante activo militar para Índia: o porta-aviões USS Kitty Hawk, que irá ser “dispensado” pela Marinha norte-americana em 2009.
Perante isto, em Pequim, poderá existir algum receio que a Índia se torne em termos de segurança regional num “novo Japão”, servindo os intuídos de “encirclement” da China.

Novas fronteiras

Ao mesmo tempo que observam estes desenvolvimentos certamente com alguma preocupação, as autoridades chinesas irão provavelmente reforçar as iniciativas que promovam a interdependência e a criação de mecanismos institucionais de resolução de conflitos comerciais e não só. Ou seja, estas dinâmicas – competição e complementaridade - não se excluem. Antes coexistem num processo complexo dependente de diversas variáveis. Entretanto, “os dois gigantes” vão continuar a observar-se e “aprender” com as virtudes e limitações de cada um dos modelos. A resolução do velho problema fronteiriço e o reforço dos laços “people-to-people” serão passos importantes para algo mais substancial que a retórica oficial e as estatísticas do comércio bilateral.

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