Saturday, November 08, 2008

Rumo a um "quanmindang"?

José Carlos Matias

Texto Publicado no dia 06/11/2008 no jornal Hoje Macau

A Constituição do Partido Comunista Chinês (PCC) não deixa margem para grandes dúvidas. Logo no primeiro parágrafo do programa geral do PCC, é referido que o partido é “a vanguarda da classe trabalhadora do povo e da nação chinesa”. Uma formulação de cariz marxista-leninista que é completada logo de seguida com a declaração que o PCC lidera a promoção do “socialismo com características chinesas e representa as forças produtivas avançadas”, numa alusão quer a Deng Xiaoping, quer à Teoria das Três Representaçãoes formulada por Jiang Zemin. A forma como o PCC tem evoluído com os tempos e como abandonou a lógica classista operária-camponesa para abraçar a economia de mercado e integrar nos seus quadros a burguesia (forças produtivas avançadas) tem suscitado um debate alargado entre os observadores do PCC sobre a natureza do Partido e os caminhos que esta organização com mais de 70 milhões de militantes poderá seguir no curto e médio prazos.

Um Partido de e para todos?

Partindo da premissa que o Partido, de forma pragmática, tem estado em simultâneo a moldar a transformações sócio-económicas e a adaptar-se a elas, será que estamos no processo da transformação do PCC num “quanmindang” (全民党), ou seja num “partido para todas as pessoas”, no sentido de ter abandonado exclusivamente o eixo composto por operários, camponeses, soldados e burocratas (“revolucionários profissionais”)?
Neste processo é interessante verificar que a liderança do PCC tem apostado simultaneamente em estratégias de reforço da auscultação de elementos e forças sociais externas ao partido e na cooptação para a orla do Partido - e consequentemente do poder - de intelectuais que, em tese, poderiam constituir uma ameaça. Como ponto de partida (e chegada) para este debate estão aspectos centrais como a manutenção do Partido Comunista Chinês como força de vanguarda na sociedade, no estado, com legitimidade e agilidade para “acompanhar os tempos”.

Aprender com virtudes e erros alheios

Na preparação para os vários cenários que podem surgir, ao longo dos anos 1990 e desde o início desta década, a Escola Central do Partido tem estudado não apenas as experiências dos partidos comunistas da ex-União Soviética e dos seus satélites, como de regimes de democracia mais musculada em que um único partido deteve o poder durante décadas, ou casos de democracia de tipo ocidental onde o mesmo se tem passado. Assim, foram analisadas situações como o People’s Action Party de Singapura, o UNMO da Malásia, o Partido Nacional Democrático do Egipto ou o Partido Liberal Democrático no Japão. Em “Chinese Politics in the Hu Jintao Era”, Willy Lam dá conta das conclusões dessas análises. Em primeiro lugar, a democracia não é um pré-requisito para um partido continuar no poder, particularmente em países com tradição confucionista, em países como Singapura e o Japão. No entanto, nos critérios de sobrevivência estão aspectos como a aparência, ou mesmo substância, de servir as pessoas comuns, uma administração eficiente e relativamente incorrupta, reacção rápida a situações de crise sociopolítica e a capacidade para cultivar uma base alargada da sociedade que sustente e apoie o “status quo”.
David Shambaugh no elucidativo “China´s Communist Party: Atrophy and Adaptation” , realça a forma como a aprendizagem e o estudo do colapso dos Partidos Comunistas do Bloco de Leste e de regimes de democracia musculada e partido único “de facto” influenciou o comportamento do Partido Comunista Chinês desde o final dos anos 1980.

Uma “estabilidade dinâmica”

Para Shambaugh o Partido Comunista Chinês tem procurado colocar em prática uma lógica de “estabilidade dinâmica”, no sentido em que o termo é referido por Kenneth Lieberthal. Para se manter relevante numa sociedade chinesa cada vez mais exigente e diversa, o PCC tenderá a desenvolver uma espécie de leninismo consultivo. Ou seja, através da institucionalização de processos de auscultação pública de sectores externos ao Partido (o que tem acontecido gradualmente) e do reforço do papel e dos poderes da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), um órgão mais plural, que está presente na arquitectura da República Popular da China desde a sua fundação. Não se trata de ceder o monopólio do poder, mas sim de “alargar o espaço democrático” entre o estado e a sociedade como referiu o próprio Wen Jiabao. Shambaugh especula sobre formas de concretizar essa intenção: desde a inclusão de aspectos do segundo sistema, como a eleição de deputados pela via indirecta; passando pelo alargamento de poderes da Assembleia Popular Nacional, pela fusão da APN com a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, ou pela concessão de maior autonomia aos “Partidos Democráticos Patriotas” autorizados por Pequim. Shambaugh considera que “Hu e Wen não estão abertos à competição no sistema, mas estão a tentar aumentar a consulta a elementos externos”, de forma a melhorar os canais de comunicação para fora das paredes (que não são de vidro) do Partido. Isso “poderá ajudar a melhorar a imagem e legitimidade do Partido no curto prazo”, mas “no longo prazo será necessário introduzir elementos competitivos no sistema”.

Tubos de ensaio

Que elementos competitivos poderão ser esses? Do ponto de vista da competição externa ao Partido Comunista Chinês, as eleições para os comités de aldeia, que têm acontecido ao longo dos últimos vinte anos, em que existem listas alternativas às promovidas pelas estruturas locais do PCC são exemplos de experiências (de)limitadas de democracia de base. Por exemplo, na localidade de Xinhe, em 2005, o secretário local do Partido promoveu três dias de encontros de consulta democrática que incluíram a discussão em pormenor do orçamento da vila, seguindo a lógica dos orçamentos participativos. Para Joseph Fewsmith parece ser claro que “é no interesse da liderança central do Partido e dos cidadãos em geral aumentar os limites aos poderes dos dirigentes locais”.
Já Cheng Li olha para o topo da estrutura do Partido Comunista Chinês e identifica sinais que podem levar à institucionalização de facções dentro do Partido, num processo de democracia intra-partido (“dangnei minzhu”). O autor identifica duas grandes facções dentro do PCC. Por um lado a coligação “populista”, onde pontificam o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao. Neste grupo estão incluídos muitos dos antigos dirigentes da Liga da Juventude Comunista e líderes do Partido em zonas mais pobres. Aliás, esta coligação tende a defender as províncias do interior que menos têm beneficiado com as reformas económicas. Não também por acaso que esta sensibilidade tem estado a promover o reforço das políticas sociais e de apoio às zonas rurais. Por outro lado, Cheng Li, identifica a “coligação elitista”, liderada por dirigentes ligados à chamada facção de Xangai, que é vista como próxima do ex-presidente Jiang Zemin e do ex-vice-presidente Zeng Qinhong. Neste grupo pontificam vários “princelings” (filhos de antigos dirigentes do Partido Comunista Chinês), haiguipai (retornados que estudaram no estrangeiro) e classes empresariais. Com base nesta análise, Cheng Li argumenta que dentro de quinze a vinte anos o facciosismo poderá institucionalizar-se, reforçar a democracia interna e, num cenário de reforma política significativa, no longo prazo, servir de base para um sistema bipartidário.
Seja como for, é importante acompanhar o debate sobre os mecanismos de consulta e de “democratização” dentro e fora do Partido Comunista Chinês. Os autores aqui referidos identificam tendências de um processo que por vezes passa despercebido. Para já, o que perece certo é que, citando David Sambaugh, “está a emergir um Partido-Estado mais eclético”. E como aconteceu com a evolução económica, “o sistema político chinês vai incorporar aspectos externos e endógenos numa fórmula original e híbrida”.

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