Texto Publicado no Jornal Hoje Macau em 02-05-2008.
José Carlos Matias
As recentes manifestações de chineses, dentro da República Popular da China (RPC) e no exterior, por onde passou a tocha olímpica, trouxeram à tona de novo a questão do sentimento nacionalista do país que vai acolher em Agosto a maior festa do desporto mundial. Num olhar imediato e superficial somos tentados a concluir que as manifestações são fruto da forma como os media na RPC filtram a informação que tem chegado ao país dos protestos contra a passagem da chama em várias cidades, na maioria com manifestantes a defenderem a causa do governo tibetano no exílio. Contudo essa observação em si – não sendo incorrecta - deixa muito por explicar. Vale a pena começar por olhar para os protestos contra a França e em defesa do boicote da cadeia de supermercados Carrefour no contexto de uma série de erupções nacionalistas que sucederam ao longo dos últimos dez anos.
Belgrado, o avião-espião e os manuais japoneses
Em 1999, na operação militar na Sérvia e no Kosovo, a NATO bombardeou, aparentemente por engano, a embaixada chinesa em Belgrado, provocando a morte a três cidadãos chineses. A aliança atlântica pediu desculpas explicando que estava a utilizar um mapa desactualizado quando foi efectuado o ataque, mas muitos chineses não aceitaram esta justificação. Ao longo de vários dias milhares de chineses protestaram de forma agressiva junto à Embaixada dos Estados Unidos em Pequim e em frente de edifícios consulares norte-americanos em várias cidades na China, como forma de expressar a ira face a um acto que consideravam deliberado. As autoridades chinesas toleraram esta onda anti-americana, num gesto que foi visto por alguns analistas como a prova de que o Partido Comunista Chinês (PCC) estava a estimular o sentimento nacionalista entre a população, especialmente os jovens. Muitos manifestantes pediram ao governo central que tivesse uma atitude mais dura para com Washington.
Dois anos depois, as pulsões anti-EUA subiram de novo de tom, na sequência da colisão entre um avião-espião de reconhecimento dos EUA e um caça que chinês. O aparelho norte-americano não estava em águas territoriais chinesas, mas já estava a sobrevoar a Zona económica exclusiva da RPC, pelo que Pequim reagiu de forma enérgica ao incidente. À margem do debate legal sobre se os EUA tinham o direito de utilizar um avião-espião a 80 milhas da costa chinesa, vários protestos eclodiram de novo com milhares de chineses a insurgirem-se nas ruas contra o “imperialismo americano.
Em 2005, o alvo da onda nacionalista foi o Japão, a propósito dos manuais escolares de História nipónicos em que vários crimes de guerra praticados pelo exército imperial japonês durante a ocupação da China são omitidos. De novo o povo saiu à rua. Ao longo dos últimos anos, especialmente nos protestos anti-Japão de 2005 e anti-França nas últimas semanas, as novas tecnologias – internet e Sms – desempenharam um papel muito importante. Esta situação coloca desde logo em causa se os protestos foram orquestrados pelo PCC ou se nasceram de movimentos espontâneos populares, tendo sido – facto consumado – tolerados pelo partido que, numa lógica ainda leninista, procura controlar os movimentos populares e ser a vanguarda dos movimentos de massas.
Um nacionalismo além-PCC
Peter Gries, académico norte-americano e autor de vários artigos e livros sobre o nacionalismo chinês, argumenta que “o PCC está a perder o controlo sobre o discurso nacionalista”, uma vez que o neo-nacionalismo que brotou nos anos 1990 tem um cariz popular forte que pode em última instância ser utilizado para colocar em causa o monopólio do poder detido pelo PCC. Gries assegura que “com a emergência da internet, telemóveis e mensagens de texto SMS, os nacionalistas populares na China estão paulatinamente a ser capazes de agir independentemente do estado”. Claro que as malhas da censura procuram manter a situação sobre controlo, contudo é difícil ao governo central impedir manifestações de nacionalismo e patriotismo (aiguo zhuyi), uma vez existe na “alma chinesa” uma narrativa latente dos 150 anos de humilhação e de vitimização que funciona como um gatilho para estas manifestações sempre que regressa a percepção de que o mundo - normalmente o Ocidente personificados pelos EUA – quer impedir a re-emergência da China como potência económica, comercial e eventualmente militar. Naturalmente que o PCC utiliza e manipula estes sentimentos populares ao inculcar no sistema educativo um patriotismo exacerbado e ao promover alguns destes protestos através de organizações para-partidárias.
Uma espada de dois gumes
Contudo, o PCC saberá certamente que este é um jogo muito perigoso. Na verdade é uma faca de dois gumes. Por um lado, o nacionalismo é conveniente ao PCC especialmente após o descrédito do comunismo enquanto ideologia e depois dos protestos de Tiananmen em 1989. Quer isto dizer que o nacionalismo serve como factor de legitimação de um Partido único que procura refazer o léxico e a semântica do socialismo com características chinesas. No entanto este nacionalismo nem é provavelmente o principal factor de legitimação nem o nacionalismo chinês é análogo ao que na Europa brotou no século XIX, tendo chegado ao poder na sua forma mais reaccionária no século XX. Ren Bingqiang, professor na Universidade de Pequim, defende que uma diferença essencial entre os nacionalismo chinês e ocidental é que e”o nacionalismo no Ocidente cresceu durante as revoluções liberais, aquando da criação dos estados-nação, ao passo que o nacionalismo chinês emergiu como resposta à invasão estrangeira”. Na verdade, o primeiro movimento de massas nacionalista – no sentido moderno – surgiu na altura da chamada Revolução dos Boxers contra a influência ocidental, no limiar do século XX, quando a China Qing era presa fácil para o imperialismo do Ocidente. O complexo de vitimização está latente também porque é explorado pelo PCC em situações de crise. Em todos os casos referidos aqui de erupções populares de nacionalismo – bombardeamento da embaixada chinesa em Belgrado, incidente com o avião espião dos EUA, manuais escolares japoneses e protestos anti-França por causa das posições de Sarkozy de apoio à causa tibetana e das acções violentas contra a chama olímpica em Paris – as manifestações nacionalistas surgiram como reacção a uma percepção de humilhação por parte de países ocidentais ou aliados do Ocidente (como é o caso do Japão).
A proliferação de “China bashers” nos “media” ocidentais, como o ignóbil Jack Cafferty, comentador residente da CNN que chamou de “rufias” aos líderes chineses e classificou de “lixo” os produtos fabricados na China, ajuda ao recrudescimento do nacionalismo chinês mais rasteiro. A tese da “China como ameaça” pode transformar-se numa “self-fulfilling prophecy”. Não se trata de fazer auto-censura face ao que tem que ser dito sobre os atropelos aos direitos humanos na China, seja no Tibete, em Pequim ou Urumqi. Trata-se sim de, ao nível oficial e em declarações públicas, ter uma dose de responsabilidade e de entendimento sobre a história recente da RPC. Na edição de 21 de Abril da revista Newsweek, Fareed Zakaria, num habitual acesso de lucidez, explicou por que é que é importante não alimentar o nacionalismo na China e por que é que a humilhação pública funciona muito pior no regime de Pequim do que a pressão privada (pelos canais diplomáticos apropriados).
Entretanto, vale a pena continuar a acompanhar as pulsões nacionalistas na China, uma vez que tudo indica que seja um movimento com raízes populares, que escapa ao controlo total do PCC e que, por isso, pode transbordar para outras causas que se possam virar contra o governo. Esse é o grande receio em Zhongnanhai (sede do PCC em Pequim). É que as manifestações de fervor patriótico têm sido raros momentos (autorizados pelo regime) de expressão em massa nas ruas de uma sociedade civil provavelmente ansiosa por se fazer ouvir fora dos mecanismos rígidos das estruturas do PCC e do estado.
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