Saturday, May 24, 2008

Um novo ciclo em Taipé

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 20-03-2008.

Independentemente de quem vencer as eleições presidenciais em Taiwan no próximo sábado, será aberta uma nova página na história política da ilha a que os portugueses chamaram de Formosa. A estratégia de Chen Shui-bian, na presidência nos últimos oito anos, de provocação, deverá ter um fim, mesmo que vença o candidato menos cotado nas sondagens, Frank Hsieh do Partido Democrático Progressista (PDP), força política de Chen. Esse novo ciclo deverá alterar a relação de Taiwan com a China continental e terá efeitos no papel que Macau e Hong Kong têm desempenhado no tráfego de passageiros e de mercadorias.

A vantagem que o candidato do Kuomintang (KMT), Ma Ying-jeou, tem nos estudos de opinião e sondagens reflecte uma saturação por parte dos taiwaneses com o os escândalos de corrupção dos últimos governos e o estilo agressivo e populista de Chen, que, ao optar pela confrontação com Pequim, alienou as vantagens que Taiwan poderia ter colhido com um reforço das relações económicas com o continente. Ao passo que a maioria dos países mal pode esperar pela oportunidade de beneficiar com o crescimento da China, Taiwan tem sido uma excepção. As dificuldades económicas por que passa Taiwan ditaram a mudança no discurso do PDP e a vantagem do KMT, que em Janeiro assegurou a maioria absoluta nas eleições para o parlamento (lifa yuan).

A economia, acima de tudo

Na verdade, Ma e Hsieh partilham a perspectiva de que é importante colocar em prática políticas amigas do investimento e comércio com a China. A diferença está no tom, nas prioridades e na velocidade da aproximação. Ma Ying-jeou, ex presidente da Câmara de Taipé, tem uma agenda ambiciosa que passa pela criação de um mercado comum no Estreito de Taiwan com livre movimento de capitais e bens, mas não de pessoas. O início desse processo, propõe Ma, será a abertura imediata das ligações directas aéreas, começando com voos charter aos fins-de-semana, para, dentro de um ano, terem início os voos directos regulares com a China continental. O candidato do KMT prometeu abrir Taiwan ao investimento continental em sectores como o imobiliário, à entrada de turistas chineses e ao reconhecimento dos diplomas universitários da China continental. Após um coro de críticas de Hsieh sobre o perigo de uma bolha especulativa no imobiliário com a entrada de investidores chineses, e da perda de empregos, com a mudança de unidades de produção para a China, Ma corrigiu o discurso garantindo que Taiwan não abrirá as portas a produtos agrícolas do continente, à entrada de trabalhadores do outro lado do estreito e aos produtos de má qualidade fabricados na China. Para não afastar o eleitorado do centro e com o objectivo de captar algum eleitorado moderado que tem votado no PDP, Ma inseriu no seu discurso os três nãos: não às conversações sobre a reunificação, não à declaração de independência e não ao uso da força por qualquer um dos lados. Hsieh é mais cauteloso face à aproximação económica com a China, temendo efeitos nefastos, explorando esse receio como arma eleitoral contra Ma. Mas o candidato do PDP, ex primeiro-ministro, também promete criar um enquadramento mais propenso aos investimentos de empresários de Taiwan na China e vice-versa. Hsieh defendeu na campanha ainda a abertura seleccionada de voos charter directos entre os dois lados do estreito e a abertura ao investimento de empresas chinesas na construção de edifícios comerciais e de serviços, mas rejeitando a entrada no sector residencial.

Ainda a questão da identidade

À primeira vista as eleições poderiam ser resumidas à famosa máxima “Its the economy, stupid”, que valeu a vitória a Bill Clinton sobre George H. Bush em 1992. Essa é a linha de argumentação do Kuomintang, mas Hsieh, mesmo distanciando-se do radicalismo pró-independência de Chen Shui-bian, salienta que as questões ligadas à segurança nacional e à identidade de Taiwan ainda prevalecem. Prova disso é a questão do referendo proposto por Chen Shui-bian sobre a entrada da ilha nas Nações Unidas sob a designação de Taiwan, uma consulta popular que será realizada em simultâneo com as eleições presidenciais e um outro referendo da autoria do KMT em que é proposta a participação de Taiwan de forma flexível em organizações internacionais. As duas consultas não deverão ser vinculativas, ou seja não deverão ter mais de 50 por cento de participação eleitoral.

Se em, termos económicos existem semelhanças nos programas dos dois candidatos, a perspectiva face à questão da identidade de Taiwan permanece bastante diferente. Para Hsieh a República da China já foi “taiwanizada”, daí que Taiwan seja a República da China e vice-versa. Isto é, ter a nacionalidade da República da China significa ter uma identidade taiwanesa, daí que o futuro da ilha só possa ser decidido pelos 23 milhões de habitantes. Já Ma considera que apenas a República da China é detentora da soberania e não Taiwan, ou seja, a sua perspectiva radica ainda na questão histórica, do legado da guerra civil entre o Partido Comunista Chinês e o Kuomintang. Em todo o caso, a posição de Ma acaba por ser dúbia, sendo pressionado por um lado pela velha guarda nacionalista do KMT e, por outro, pela necessidade de conquistar o eleitorado moderado. Daí que, apesar de defender um desanuviamento do clima nas relações com Pequim e de propor um programa económico ambicioso, Ma Ying-jeou seja mais cauteloso que Lien Chan, candidato presidencial em 2004 que, em 2005, efectuou uma visita histórica à China, garantindo que, durante o seu mandato, não irá ter encontros com Hu Jintao ou iniciar conversações rumo à reunificação. A estratégia de Ma passa por não aparecer aos olhos do eleitorado como o candidato de Pequim, uma vez que a sociedade de Taiwan continua muito dividida face à questão das relações políticas com a China. É por isso que esta semana criticou o que considera ser a “arrogância” de Wen Jiabao sobre a questão de Taiwan e deu a entender que, se a China continuar a reprimir os protestos de tibetanos, a ilha poderá boicotar os Jogos Olímpicos.

À espera do efeito “spill over”

Uma aproximação económica poderá levar inevitavelmente no médio ou longo prazo a uma relação política que rompa com o permanente “deadlock” do status quo. Numa perspectiva neo-funcionalista, a crescente interdependência económica e comercial levará à institucionalização de laços políticos, num efeito de “spillover”, à semelhança do que sucedeu como a integração europeia nos últimos 50 anos (salvaguardando as devidas diferenças). O problema diz respeito à forma como ser irá materializar essa institucionalização e qual será base mínima para o diálogo. Ao que tudo indica, Ma defende que a base de negociação deverá ser o chamado “consenso de 1992”, sobre o princípio de uma China, decorrente do diálogo que teve lugar em Hong Kong entre a Associação para as relações no estreito de Taiwan, entidade da China continental, e a Fundação Para o Intercâmbio no Estreito, instituição de Taiwan. No entanto, a visão de uma China suscita interpretações diferentes dos dois lados do Estreito. Além disso, podendo esse ser o ponto de partida será difícil e moroso o processo de “encaixe” de Taiwan no Princípio Um País, Dois Sistemas. Começar por criar um mecanismo de diálogo com vista à paz e segurança regional, no estreito, seria um primeiro passo que fortaleceria a confiança mútua. Mas neste longo caminho há sempre que contar com a posição de Washington, que certamente receia perder terreno como potência militar regional a favor de uma Pax Sínica.

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