Sunday, June 29, 2008

O urso abraça o dragão?

José Carlos Matias
Texto Publicado no jornal Hoje Macau em 26-06-2008.

Há cerca de um mês o novo presidente da Rússia, Dimitri Medveded, escolheu a China como local da sua primeira visita oficial fora do espaço da antiga União Soviética, após ter estado no Cazaquistão. O sinal diplomático estava dado: Moscovo encara o relacionamento com Pequim como primordial. Do mesmo modo, em 2003, Hu Jintao realizou a sua primeira deslocação ao exterior à Rússia. Já há oito anos, Vladimir Putin, então recém-empossado Chefe de Estado, tinha escolhido Londres com o primeiro destino fora da Comunidade de estados Independentes (CEI), após uma curta visita à Bielorrússia. A imprensa chinesa depressa salientou o significado do gesto de Medveded. Mas afinal que tipo de relação é esta entre dois países que se encararam ao longo de parte do século XX com receio e desconfiança?
Historicamente, a imagem da China enquanto ameaça no imaginário russo tem início no final do século XIX quando certos círculos do poder imperial da Rússia branca começaram a temer que houvesse uma “sinização” do Extremo Oriente Russo. Simultaneamente, a Rússia expandia-se momentaneamente para a China, criando bases militares na Manchúria.
Após a Revolução Russa, a China não era entendida como uma grande ameaça para a União Soviética, apesar dos confrontos esporádicos entre senhores da guerra da caótica República da China e o Exército Vermelho. Numa primeira fase da República Popular da China, os laços entre os dois estados socialistas eram bastante próximos, numa altura em que Pequim olhava para Moscovo como o farol da construção de um mundo comunista contra o “imperialismo ocidental”. Após a morte de Estaline o relacionamento esfriou, mas a aliança perdurou até meados dos anos 1960. A ruptura sino-soviética perdurou até ao final dos anos 1980. Depois do colapso da União Soviética as relações ganharam novos contornos. Em Pequim teve início um processo de análise sobre as causas do fim do regime soviético com o objectivo de aprender com os erros do vizinho do Norte que levaram ao fim do regime socialista soviético, ao mesmo tempo que em Moscovo as elites russas oscilavam entre uma política mais próxima do Ocidente e uma perspectiva mais “asiática” da re-emergência da Rússia perante uma China que ascendia num processo de modernização iniciado por Deng Xiaoping.

Interesses que mudam

À primeira vista, no plano internacional os dois países partilham uma visão soberanista (Westefaliana), ou seja, de rejeição da ingerência nos assuntos internos, especialmente o unilateralismo norte-americano. Essa convergência tem sido notória nas posições tomadas aquando da invasão anglo-americana do Iraque e no “dossier” nuclear iraniano. Em meados dos anos 1990, Pequim e Moscovo uniram-se na liderança da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) que junta a Rússia, a China e as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central.
Contudo, as ilusões chinesas face a Moscovo são limitadas. No passado recente e no horizonte sobressaem várias fricções neste relacionamento classificado por Bobo Lo, analista do Center for European Reform, como “Eixo da Conveniência”. No seu entender o que tem aproximado os dois países são sobretudo os interesses conjunturais e não as ideias. E os interesses mudam, considera.
Que interesses diferentes são esses que justificam este ponto de vista? Em primeiro lugar, a percepção da China enquanto ameaça não desapareceu. Mudou de contornos. Antes centrava-se sobretudo no receio de uma invasão militar, actualmente entre a população russa do Extremo Oriente a vinda de imigrantes chineses continua a ser vista de uma forma muito céptica. No imaginário permanece o fantasma de uma “invasão” demográfica de chineses que poderão preencher os infindáveis espaços vazios da zona a norte da RPC. Na base deste temor está um cálculo comparativo simples: nas províncias fronteiriças do norte da China vivem 110 milhões de chineses ao passo que na zona a leste do Lago Baikal apenas residem 7 milhões de russos.
Este receio não corresponde de todo a uma ameaça real, mas ilustra a desconfiança que vigora ainda a nível popular nessa zona da Rússia. Do ponto de vista da alma russa, o verdadeiro perigo da emergência da China reside na marginalização progressiva de Moscovo como actor global e regional.
No que diz respeito à Ásia Central, Moscovo e Pequim estão à mesma mesa na OCX, mas com os objectivos diferentes. A Rússia pretende em primeiro lugar reassumir o seu papel de liderança na região, já a China tem como principal intenção garantir um ambiente de paz, estabilidade e controlo dos movimentos transfronteiriços com especial interesse nas actividades de grupos ligados aos separatistas de Xinjiang. Além disso, Pequim procura em simultâneo reforçar o seu “soft power” e garantir fontes de fornecimento de energia e expandir as suas relações de mercado. Na verdade, para a RPC, um ambiente de maior interdependência gera mais estabilidade.

“Fazer tudo ao mesmo tempo”

No momento em que Medveded visitou a China, assuntos como os desequilíbrios na balança comercial, as descidas nas vendas militares russas à China ou o impasse face à cooperação energética pairaram sobre os encontros do presidente russo com a liderança chinesa. Face ao actual momento das relações sino-russas, um analista político da Agência de notícias russa Novosti dizia que é difícil perceber o que temos de fazer a seguir: “aumentar o investimento, continuar com a cooperação espacial, fazer filmes juntos ou traduzir mais livros? Devemos fazer isso ao mesmo tempo?”. Isso e muito mais.

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