Legitimidade e legitimação na China pós-Maoísta
José Carlos Matias
Texto publicado no jornal Hoje Macau no dia 4 de Setembro de 2006.
Seguindo a definição formulada por Seymour Lipset, a legitimidade de um sistema político deverá ser entendida como a sua capacidade de engendrar e manter a crença de que as instituições políticas vigentes são as mais apropriadas para a sociedade. David Beetham acrescentou uma outra dimensão a este conceito, tendo em conta o processo de legitimação, ao nível da interacção comunicativa numa sociedade. Nesta perspectiva o objectivo passa pela reprodução da legitimidade de um regime num proceso em que a ideologia assume um papel relevante. Sendo óbvio, como referia Max Weber, que diferentes sistemas de dominação implicam lógicas díspares de legitimação, qualquer sistema procura fomentar a sua legitimidade, ou, por outras palavras, justificar-se.
Ao analisarmos o momento de transição por que passa a República Popular da China (RPC) no início deste século – um movimento que começou no final dos anos setenta com a ascenção ao poder de Deng Xiaoping – em termos de legitimidade e legitimação, somos levados a induzir que existe um desfasamento entre uma retórica da via socialista chinesa (o socialismo de mercado com características chinesas) e a realidade de uma sociedade desideologizada, que vai procurando adptar-se ao ritmo das mudanças decorrentes da abertura das portas ao capitalismo.
Verdade, Benevolência e Glória
Para percebermos o significado dos conceitos de legitimidade e legitimação na pós-Maoísta é importante mergulharmos nos pilares do contrato social implícito da China imperial. Vivienne Shue lembra que a ideia segundoa qual o bom governo é aquele que cuida da manutenção da harmonia com o cosmos e a paz na ordem social está presente desde a alvorada da civilização chinesa. Ao longo dos séculos perduraram três fontes de legitimação do governo do “Filho do Céu” sobre a população: Benevolência, Verdade e Glória. A ideia de Benevolência diz respeito ao exercício da boa governação, ou seja na prática à responsabilidade pelo bem estar da população e à compaixão que o suserano deve demonstrar pelos seus súbditos. Os lideres ideiais seriam aqueles que, tendo por base verdades universais, manifestassem a benevolência adequada de forma a manter a estabilidade e a paz social e amplificar a glória da civilização sínica. Naturalmente que estes conceitos de legitimidade e legitimação subsidiários do Confucionismo e do Taoísmo já não são publicamente expressos pela liderança, pelo menos no fraseado que servia de sustentáculo à ordem imperial. Mas não deixa de ser interessante verificarmos que, embora a noção de verdade tenha uma retórica racionalista – Deng Xiaoping dizia que precisamos de “procurar a verdade através dos factos” – a ideia de benevolência como fonte de legitimidade manifesta-se através de novas formas crescentes de organizações e movimentos, coordenados pelo Partido Comunista Chinês, votados às acções de caridade e solidariedade social e fundos de ajuda a situações de emergência, entre outras manifestações. A glória provém da emergência da China como um actor-chave na economia internacional e respeitado depois do período de tumultos, guerras e ocupações que durou mais de cem anos.
As estratégias de legitimação: o nacionalismo
Tornou-se quase um lugar-comum entre os observadores da China contemporânea defender que, a parir dos anos oitenta e em especial após o fim da Guerra Fria, a exaltação do sentimento patriótico e nacionalista substituiu a ideologia marxista-leninista-maoísta que servira de pilar da RPC desde 1949. A emergência de formas de nacionalismo foi visível em quatro ocasiões ao longo dos últimos dez anos: primeiro, em 1996 nas maifestações sobre a questão da soberania sobre as ilhas Diaoyu; em 1996 e 1997 com o impacto do livro The China That Can Say No: Political and Emotional Choices in the post Cold-War era, um best-seller encarado como o despertar do novo nacionalismo chinês; em 1999 nas manifestações veementes contra o bombardeamento (por engano?) da embaixada chinesa em Belgrado durante a campanha da NATO na Sérvia e Kosovo; e em 2005 com as manifestações violentas anti-japonesas por causa dos manuais escolares de história do Japão e as visitas do primeiro-ministro nipónico ao Templo de Yasukuni. Em quase todas estas manifestações o papel do PCC e do governo central foi ambivalente: por um lado estimulou os fenómenos; por outro procurou controlá-los. Mas esse jogo duplo afigura-se bastante perigoso, uma vez que parte desse sentimento está enraízado na nova cultura popular e exala uma vertente populista. É para isso que alerta Peter Hays Gries ao salientar que a existência desse nacionalislimo popular - e por vezes populista - de forma autónoma mina a hegemonia do PCC sobre os movimentos sociais e por consequência a dimensão leninista do PCC não apenas como vanguarda, mas também como monopolizador.
É em parte por isso que o nacionalismo não poderá ser encarado o factor, por excelência, de legitimidade na China pós-Maoista e sobretudo pós-Tiananmen. Quer isto dizer que é um aspecto muito importante que deve ser articulado com outros que enformam um regime que procura âncoras de legitimação também no que se poderá designar de “desenvolvimentalismo”, na sua acção no plao internacional ou na consolidação do estado de direito. Tudo isto é cosido e cimentado através da ideologia, que, ao contrártio do que possa parecer, continua a ter um lugar fundamental no discurso das elites sobre a legitimação deste sistema.
Desenvolvimento e estado de direito
Terminado desiderato da construção de uma sociedade sem classes, a promoção do bem- estar e do desenvovlimento de um país em desenvovlimento tornou-se numa das principais bandeiras do discurso da liderança chinesa, nomedamente, desde o anúncio das “Quatro Modernizações” enunciadas por Deng Xiaoping. Nesta perspectiva, a legitimidade do regime radica na capacidade de manter um ritmo continuado de desenvolvimento e melhoria das condições de vida da população, o que tem sido conseguido, em grande medida, através da aberura económica que, segundo o Banco de Desenvolvimento Asiático, gerou um movimento inédito na História de eliminação da probreza que envolveu cerca de trezentos milhões de pessoas, num período de um quarto de século.
A entrada da economia de mercado na China tem sido justificada pelos dirigentes, nomeadamente por Deng, como uma forma de “usar o capitalismo para desenvolver o socialismo”.Ou, nas palavras de Lula da Silva quando visitou Pequim, antes da eleição para Presidente do Brasil, “os chineses estão apresndendo a ganhar dinheiro como os capitalistas para depois o gastar como socialistas”. Ora, seria desnecessário concluirmos que esta declaração mais não é que um “wishful thought”.
Os mais optimistas – de um ponto de vista demo-liberal – acreditam que a abertura à economia de mercado e a consequente emergência de uma classe média com poder de compra acabará pro gerar uma sociedade que tendo mais liberdade de escolha como consumidora, num “spin-off effect” passará a ter exigências mais amplas ao nível das liberdade civis e, maxime, exigindo a democratização do sistema político. A grande dúvida, de acordo com esta perspectiva liberal, - o chamado argumento Shumpeteriano - é se isso vai aocntecer de forma gradual ou atarvés de uma ruptura. Ou seja, de que forma um regime “neo-autoritário desenvolvimentalista” (com características chinesas) irá transformar-se num sistema democrático liberal? Não é essa a pergunta central deste ensaio embora esta questão nos leve a outra resposta – essa sim – que nos guia na busca das estratégias de legitimação. Em vez de prever que esse caminho seja inevitável e recusando essa visão determinista, Christopher McNally admite que swerá inevitável que a China evolua para uma forma de “estado constityucional” com direitos liberdade e garantias mais abrangentes. O fortalecimento do estado de direito,por outro lado, visa também combater a corrupção endémica (pandémica?) que assola o aparelho de estado, especialmente o poder local e provincial. Esse fenómeno acontece também – e principalmente – por causa das pressões que os actores económicos, internacionais e domésticos, exercem sobre o poder político. A boa governação transparente e reguladora é a chave para o funcionamento saudável da economia de mercado.
A ideologia como instrumento de legitimação
Para sistematizar tudo isto – nacionalismo, “desenvolvimentalismo” e fortalecimento do estado de direito – a ideologia continua a desempenhar um papel crucial. Nesse sentido, a “Teoria das Três Representações” delineada por Jiang Zemin é mais importante do que possa parecer à partida. Claro que se trata de uma inversão dos prinícpios-base do marxismo clássico, ao chamar ao Partido as forças produtivas avançadas da sociedade, um eufemismo para admitir os capitalistas no Partido que procuraria superar o capitalismo, mas não nos cabe neste texto fazer esse tipo de abordagem normativa. O que é importante é que a “teoria” de Jiang procurou re-legitimar o regime e co-optar uma classe que poderia no limite tornar-se agente da mudança e ameaçar a hegemonia do PCC. Não é por acaso que Hu Jintao apelou recentemente aos quadros do Partido que releiam o que Jiang escreveu e que as “Obras Escolhidas” do anterior líder da China são um “best-seller”. Será de esperar também que a próxima geração enalteça os contributos teóricos “inovadores”de Hu Jintao e da sua perspectiva da “sociedade socialista harmoniosa” e do “novo campo socialista”, que mais não é que uma forma do Partido gerir as expectativas sociais de numa maneira que mostre o PCC como a força de vanguarda capaz de aprender e adaptar-se às mudanças socio-económicas, redesenhando o arco milenar da legitimidade e legitimação do poder na China. Verdade, Benevolência e Glória.
Referências:
Christopher McNally. “Insinuations on China’s Emergent Capitalism”, East West Working Papers, nº 15, 2006.
Heike Holbig, “Ideological Reform and Political Legitimacy in China: Challenges in the Post-Jiang Era”. Working Paper, German Intitute of Global Areas Studies, 2006.
Peter Hays Gries. “Popular Nationalism and state legitimation” in Peter Hays Gries e Stanley Rosen (eds.), State and society in 21st century in China, Nova Iorque: Routledge, 2004.
Vivianne Shue. “Legitimacy Crsisi in China?”, in Peter Hays Gries e Stanley Rosen (eds.), State and society in 21st century in China, Nova Iorque: Routledge, 2004
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