Sunday, March 28, 2010

A China face ao mundo: Multipolaridade e Multilateralismo

Working Paper apresentado no V Congresso da Associação Portuguesa de Ciência Política,

Universidade de Aveiro, 4-6 de Março de 2010


A postura da China no sistema internacional tem sofrido alterações significativas nos últimos anos. Se no início dos anos 1980 Deng Xiaoping aconselhava a China a não procurar tomar a dianteira nas questões internacionais e a ter uma atitude modesta na exposição das suas capacidades, em 2009, temos uma RPC que se assume gradualmente como uma potência (daguo) numa ordem internacional em transição do unipolarismo pós-Guerra Fria para um cenário de um mundo complexo, interdependente, com novos pólos (e por isso tendencialmente multipolar).
Neste ensaio, procuramos olhar em perspectiva para o percurso da China nas relações internacionais desde o início da Era da Reforma, com especial incidência sobre as últimas duas décadas. A forma como o país tem abraço, participado e estado na origem de instituições e mecanismos multilaterais tem suscitado um debate aceso na academia sobre as intenções e os interesses da China no contexto da ordem mundial Pós-Guerra Fria. Numa primeira fase sobressaía uma valorização da multipolaridade e de um discurso público mais próximo da lógica realista. Nos últimos anos, contudo, retórica e em parte a acção foram afinada num sentido de maior valorização do multilateralismo, numa abordagem aparentemente mais liberal-institucionalista.

Do multilateralismo e da polaridades


Na literatura das relações internacionais, multilateralismo, bilateralismo ou imperialismo são conceitos que servem de base à forma como as relações entre os estados são organizadas. Na perspectiva de John Ruggie, o multilateralismo distingue-se de outras formas de organização sobretudo devido a três características principais:indivisibilidade, princípios gerais de conduta e reciprocidade difusa. O multilateralismo enquanto instituição difere meramente de actividades ou organizações multilaterais, representando uma forma particularmente exigente de interacção para os actores envolvidos. O multilateralismo é assim a chave para uma particpação plena de todos os países no sistema de tomada de decisões (governance) dos assuntos internacionais, sendo uma garantia de legitimacia e democracia.

A multipolaridade indica a distribuição do poder de forma relativamente equitativa entre mais de dois pólos. As opiniões sobtre a estabilidade de um sistema multipolar diferem entre autores da chamada escola realista das teorias das relações internacionais. Os realistas clássicos, como Hans Morghenthau ou E.H. Carr tendem a considerar que os sistemas multipolares são mais estáveis que os bipolares na medida em que as principais potências poderão aumentar o seu poder relativo através de alianças e conflitos secundários sem ter de desafiar directamente os outros poderes. Por outro lado, os autores neorelistas, como Kenneth Waltz[1], invertem essa perspectiva e consideram que os estados num sistema multipolar – seguindo o dilema de segurança - podem ao concentrarem os seus receios em várias outras potências e ao analisarem de forma desadequada as intenções desses outros estados, desnecessariamente comprometer a sua segurança. Ao passo que numa estrutura bipolar, centram as suas atenções e esforços nos receios face a uma outra potência. Na análise sobre as polaridades no sistema internacional, ao passo que existe um consenso entre estudiosos sobre a natureza bipolar da estrutura inter-estatal que subsistiu entre o final da II Guerra Mundial e a implosão do Bloco de Leste, nos últimos 20 anos tem havido um debate acesso sobre a natureza da distribuição de poder. O debate começa desde logo pelas noções de poder e a sua mensurabilidade.

Enquanto tradicionalmente se utilizam dados ligados ao “hard power”, nesta outra forma de olhar para a distribuição das capacidades devem ser usados indicadores de “soft power”. A avaliação do peso da leveza desse poder implica uma análise sobre aspectos ligados à cultura, ideologia e acção diplomática, entre outras vertentes. O académico norte-americano Joseph S. Nye carimbou este conceito de forma veemente no seu livro “Soft Power: The Means to Success in World Politics”[2]. Em traços, gerais o “poder macio” diz respeito à capacidade para alguém conseguir os seus objectivos no plano internacional sem usar métodos de coação ou através de pagamentos. Ou, de forma mais incisiva, “o soft power reside na capacidade para influenciar as preferências dos outros, de liderar pelo exemplo e atrair os outros a fazer o que se pretende que eles façam”.
Sem entrar em detalhe neste debate, há sinais rigorosos que nos indicam que existiu um “momentum” unilateral na década de 1990 e no início do século XXI corporizado pelas intervenções militares no Kosovo, Afeganistão e Iraque. No entanto, se em termos militares ainda hoje se deva olhar para o mundo de forma ainda tendencialmente unipolar – dada a presença militar dos EUA no mundo e tendo em conta que as despesas militares norte-americanas representam cerca de metade dos gastos mundiais com o sector militar – ao nível económico, o desenho da distribuição de poder é tendencialmente multipolar.
Mas que tipo de multipolaridade emergirá? Certamente que o EUA manterão a supremacia militar durante boa parte deste século. Economicamente, o seu papel hegemónico está a sofrer uma erosão acelerada, mas será provavelmente ao longo de todo o século a maior economia mundial em termos relativos, ou seja no rácio PIB per capita - embora deva ser, de acordo com várias estimativas, ultrapassado pela China em termos absolutos, eventualmente ainda durante a primeira metade do século.

Além de estarmos num momento de transição uni-multipolar, uma outra característica fundamental e fundacional da ordem vigente é a interdependência. Uma interdependência complexa, que se faz notar sobretudo em três esferas: económica, energética e ambiental. Como Giovanni Grevi bem nota, a combinação de uma ordem eminentemente multipolar com um aprofundamento da interdependência moldará o curso das relações internacionais neste século[3]. Grevi cunha o conceito Interpolaridade para descrever a Multipolaridade na Era da Interdependência. Essa interdependência leva ao recurso constante a fora e instituições de cariz multilateral para que os intersses divergentes que afectam todos os actores no sistema sejam dirimidos. A interdependência exige a criação de um catálogo de regras e procedimentos comummente aceites, num sistema inter-estatal ainda anárquico. Esta situação faz com que seja provavelmente inevitável reforma e melhor adequar e equipar as organizações multilaterais que no futuro poderão “governar” a interdependência multipolar, nomeadamente as Nações Unidas, FMI, Banco Mundial, G20 ou G8.
A questão é jogada não apenas ao nível global, mas também regional. E no caso da China, do a que irá suceder na região Ásia Pacífico. Nesta fase, mais que uma potência global, a China é um poder regional. Ao nível da segurança, a Ásia Oriental é uma região eminentemente bipolar em que uma potência emergente – a China – procura criar um arco de estabilidade, prosperidade e segurança, numa zona que foi dominada pelos EUA nas últimas seis décadas e onde Washington tem uma presença militar fulcral.


Da prudência à socialização

Após três décadas em que a China se foi alinhando no contexto da estrutura internacional bipolar, oscilando entre os “Dois Campos” e os “ Três Mundos”, nos anos 1980 a China iniciou uma outra forma de estar no mundo com a ascensão ao poder de Deng Xiaoping. Sob a sua liderança, a China substituiu o radicalismo de Mao Zedong por uma nova abordagem pragmática das políticas interna e externa, que tinha como base a nova raison d’être do regime chinês: o desenvolvimento e a modernização da economia.
Na arena internacional Pequim iniciou um caminho de descolagem da aliança táctica e tácita com os EUA, que tinha sido feito no princípio dos anos 70, após a ruptura com a URSS, para abraçar um novo modelo ancorado em dois conceitos que ainda hoje são apresentados como o âmago da política externa chinesa: Paz e Desenvolvimento, seguindo a máxima de Deng Xiaoping: «Quanto maior for o crescimento da China, maiores serão as hipóteses de preservar a paz mundial». Além do binómio Paz e Desenvolvimento, Pequim proclamou igualmente no início dos anos 80 a intenção de manter uma política externa independente, conduzida para satisfazer as necessidades internas de um país que se levantava depois de ter vivido em constante convulsão durante os três primeiros quartéis do Século XX. Este objectivo será tanto mais compreensível se se tiver em conta que existem dois princípios basilares que acompanham a política externa chinesa desde os tempos imperiais: a centralidade e autonomia .
Em Pequim, defesa de um mundo com vários pólos de poder tem origem no apelo de Mao Zedong aos países em desenvolvimento para se levantarem contra as nações capitalistas. Esta posição ganhou contornos mais significativos após o cisma sino-soviético e a defesa da criação de novos pólos de poder de contrapeso ao “imperialismo” americano e ao “social-imperialismo” soviético.

Com Deng a China começara a descortinar um mundo em que a estrutura bipolar da Guerra Fria iria dar lugar a uma multipolaridade da distribuição de poder no sistema internacional.
Após o final da Guerra Fria – e os incidentes de Tiananmen de 1989 - a China deparou-se como vários desafios. . No plano internacional, a China enfrentou as duras críticas da comunidade internacional, bem como sanções decretadas por alguns dos seus principais parceiros comerciais, como por exemplo o embargo à venda de armas decretado por Washington e Bruxelas e que ainda hoje está em vigor. Simultaneamente, o mundo bipolar dava lugar a uma nova ordem internacional ainda algo difusa, mas em que sobressaía, por um lado, a natureza anárquica do sistema e, por outro, a hegemonia dos EUA.
Em 1991, Jiang Zemin resumia a fórmula desenhada por Deng para enfrentar este ambiente, citando a famosa directiva dos 28 caracteres: manter a cabeça fria para observar, ser prudente nas reacções, ter uma atitude firme, esconder as capacidades, saber manter um baixo perfile, nunca tentar tomar a dianteira e ser capaz de alcançar algo.
Estas foram as traves mestras para os anos que se seguiram ao fim do mundo bipolar. Esta máxima denota não apenas a necessidade de não deixar sobressair as ambições da China, mas também reafirma uma estratégia de longo prazo de construção de um poder nacional compreensivo (zhonghe guoli), com vista a maximizar as opções da China no futuro .
Alguns anos mis tarde, em 2000, Jiang proferia uma afirmação de defesa não só da multipolaridade, mas também de rejeição velada do modelo dominante da globalização hegemónica com origem nos EUA:

“The world is multi-colored. Just as the universe cannot have only one color, so too can’t the world just have only one civilization, one social system, onde developmental model, or one set of values”[4].

No início dos anos 1990, enquanto parecia ansiar por um mundo multipolar, a China ia participando de forma mais activa em actividades multilaterais. No entanto, como nota Avery Goldstein, essa participação simbolizava sobretudo um estatuto formal de um país que deve ser incluído nos processos de deliberação em questões regionais ou de importância global. Sobressaía, claramente, ainda uma postura prudente face às instituições multilaterais.

“It’s rather reluctant involvement reflected a scepticism that multilateralism could serve China’s interests and a concern that such forums, especially in the Asia-Pacific, were subject to manipulation by the U.S. and Japan to encourage others to“gang up” against China[5]”.

A crise no estreito de Taiwan em 1995-1996 trouxe de novo à tona a percepção da China enquanto ameaça militar e os receios de um conflito com os Estados Unidos. Contudo, à semelhança do que sucedeu após Tiananmen, foi novamente após um momento de crise com repercussões negativas sobre a imagem do país no exterior, que a China deu um salto qualitativo na forma de abordar os mecanismos multilaterais.
Xu Xin salienta que após a crise no estreito, Pequim enfatizou a necessidade de ter uma postura firme que produza resultados. Foi nesse contexto que a liderança chinesa lançou uma rede ampla de parceiras estratégicas e acordos de cooperação de cariz regional e multilateral. No final da década de 1990, a China abandonou uma atitude meramente passiva e reactiva face às instituições multilaterais para adoptar uma postura positiva e proactiva.
Evan S. Medeiros e M. Taylor Fravel consideram que a uma série de contactos, acordos e parcerias que reflectem uma nova flexibilidade e sofisticação no seu comportamento enquanto actor global. Na sua perspectiva, a postura chinesa tem tido sempre como pano de fundo a intenção de promover os seus interesses económicos, reforçar a sua segurança e limitar a influência dos EUA nos países próximos da China, em especial na Ásia Central e no Sudeste Asiático.
Deste modo, a China decidiu encetar um caminho mais amplo e complexo na sua relação com o mundo, baseado numa atitude multifacetada e multidireccional.

Estabilidade e Boa Vizinhança

As relações da China com a Ásia Central, o Sudeste Asiático e África são exemplos de mecanismos regionais e multilatereais criados por Pequim, denotadoe atitude proactiva e sofisticada.

Em 1996, foi criado o «Shanghai Five» uma organização – cuja designação derivou do facto de a cimeira inaugural ter sido realizada em Xangai – que reunia a China, a Rússia, o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão, com o objectivo de reforçar a confiança mútua, a cooperação em geral e, em particu­ lar, tratar de assuntos ligados à definição de fronteiras. Quatro anos mais tar­de, este grupo foi alargado ao Usbequistão, passando a incluir todas as antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central e passou a denominar-se Organização de Cooperação de Xangai (SCO).

No aspecto regional, há que sublinhar também o aprofundamento das re­lações com a Ásia Oriental, em especial com o Sudeste do continente. Ao ní­vel político-institucional, a China participa no ASEAN Regional Forum (ARF), que junta 23 países: as nove nações da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) mais dez parceiros de diálogo – Austrália, Canadá, China, Coreia do Norte, Coreia do Sul, EUA, Índia, Japão, Mongólia, Nova Zelândia, Rússia e União Europeia (UE) – e a Papua Nova Guiné, como observador.

Por outro lado, Pequim participa no processo ASEAN+3, iniciado em 1997, que junta os Estados-membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático e três países do Nordeste Asiático – a China, a Coreia do Sul e o Japão. A China tem também sido desde a primeira hora um actor importante no Asia Europe Meeting (ASEM), que começou por juntar a União Europeia e o bloco ASEAN +3.

Ainda na década de 1990, Pequim optou por uma aproxima­ção aos países de África, Ásia e América Latina, baseada nos conceitos de paz e desenvolvimento, e guiada, em grande medida, por interesses e necessidades ao nível de matérias-primas e recursos energéticos. Em traços gerais, Pequim apoia os esforços das nações africanas em evitar qualquer interferência externa na resolução das suas disputas de modo pacífico e apoia igualmente a União Africana e outras organizações regionais que promovam a paz, a estabilidade e o desenvolvi­mento.

Para concretizar estas intenções, em Outubro de 2000 foi estabelecido o Fórum de Cooperação China-África, que junta os 45 Estados do continente africano que reconhecem Pequim como único representante da China e que rejeitam qualquer relação com o Governo de Taipé. Este mecanismo procura enquadrar e coordenar a cooperação em várias áreas: entre outros aspectos, destacam-se a agricultura, a construção de infra-estruturas, os recursos hu­manos, os recursos energéticos e as matérias-primas.

Em 2003, foi criado um outro instrumento, que surge de uma iniciativa da China e que procura potencializar os laços económicos, sobretudo com países em desenvolvimento. Com sede na Região Administrativa Especial de Macau, foi lançado o o Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, que junta a China e que têm relações com a RPC: Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Timor-Leste – ou seja todos à excepção de São Tomé e Príncipe.
Joshua Kurlantzick enquadra este vigor da diplomacia chinesa numa estratégia de amplo charme.”Charm Offensive”[6]. Primeiramente, nas relações bilaterais e nos fora multilaterais, Pequim enfatiza a lógica de “win win” (jogo de soma positiva) nas relações internacionais, contrariando a percepção de “jogo de soma negativa” típico da Guerra Fria. Em segundo, contrariamente ao intervencionismo norte-americano, a China acena com o princípio da não ingerência, seguindo a fórmula enunciada por Zhou Enlai dos Princípios da Coexistência Pacífica. Além disso, a RPC surge no plano internacional como um modelo de nação em desenvolvimento em que o processo é controlado a a partir do topo do estado, evitando uma abertura abrupta dos mercados que tantos estragos causou em países latino-americanos e do sudeste asiático que seguiram as receitas do “Consenso de Washington”. Estas três faces da China atraem sobretudo os países em desenvolvimento, que procuram alternativas ao modelo de cooperação dos EUA e da Europa.

Contra a percepção de ameaça


Na sua acção externa, a China tem procurado fazer eco da tese do “desenvolvimento pacífico” (hépíng fāzhǎn), que sucedeu no jargão oficial à “emergência pacífica (hépíng juéqǐ), abandonada por causa das implicações do termo “emergência”. O objectivo desta tese (e postura) é dissuadir os efeitos da recorrente tese da “China Ameaça” que tanto caminho fez (e ainda faz) nos EUA, Taiwan e Japão. No fundo trata-se de projectar uma imagem da China enquanto poder responsável. O objectivo é que mantendo uma postura construtiva e proactiva, a China possa estar no século XXI com a imagem de um grande poder responsável e que com o passar do tempo a chamada teoria da China Ameaça possa ser derrotada.
Segundo Susan Shirk, especialista em assuntos chineses e ex adjunta do vice-secretário de Estado dos EUA durante a administração de Bill Clinton, a tese da “emergência pacífica” assenta em três pilares: acomodação com os países vizinhos, ser um “player” em organizações multilaterais e usar laços económicos para ganhar a amizades internacionais. Em todos estes aspectos a China tem sido relativamente bem-sucedida. No primeiro pilar, como referimos, foram dados passos de gigante na criação de um ambiente de paz e co-prosperidade na vizinhança (apesar dos problemas com Taiwan e das sempre complexas relações com o Japão). No segundo, além da citada dinâmica com a ASEAN, a China lançou com a Rússia a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) que junta ao “urso” e ao “dragão”, as cinco antigas repúblicas soviéticas: Cazaquistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Turquemenistão. A estratégia multi-direccional tem sido visível também na medida em que a China cria mecanismos de diálogo intensos com um grupo de países como são os casos (todos com as suas especificidades) do Fórum China-África, do Fórum para a Cooperação entre a China e os Países Lusófonos (Macau) e dos laços cada vez mais fortes (complexos) com a União Europeia. Fora do plano do multilateralismo mais “regional”, além de ter aderido à Organização Mundial de Comércio (OMC), Pequim tem participado cada vez mais em missões de manutenção de paz das Nações Unidas. No que diz respeito a “usar laços económicos para criar amizades internacionais”, a cooperação com África, com a ASEAN ou os acordos de livre comércio com a Austrália e a Nova Zelândia são alguns exemplos claros desse princípio .
A China tonara-se assim num país “born-again regional multilateralist”, nas palavras de Susan Shirk. Ao envolver-se de forma proactiva nas instâncias multilaterais, a China sinaliza que está a assumir-se como um actor responsável que se rege por regras internacionais, numa altura em que os EUA mostravam sobretudo uma face unilateralista e menos comprometida com as organizações multilaterais.


Multilateralismo com características chinesas


A dicotomia unilateralismo-multilateralismo começou a ser explorada pela China em meados dos anos 1990, mas foi após a ascensão ao poder de Hu Jintao que foi ainda mais valorizada. Numa carta enviada ao então secretário-geral da ONU Kofi Anan, Hu sublinhou que o mundo apenas poderá lidar com os desafios globais se seguir a via do reforço da cooperação internacional e o caminho do multilateralismo. Como ponto de partida, Pequim defende um multilateralismo com base na ONU. O ex ministro dos Negócios estrangeiros Li Zhaoxing defendeu que a ONU se tornou na plataforma comum para todos os países participarem no rpcesso de tomada de decisões global, promover a democratização e legalização das relações internacionais e preservar os interesses comuns.
A China também encara o multilateralismo como um princípio organizador compatível com os processos de multipolarização e globalização. Na verdade, o reforço do multilateralismo pode ser usado para democratizar a hegemonia dos EUA e domar os impulsos unilaterais de Washington.
Ou seja, trata-se de cooperar para maximizar o posicionamento na estrutura de poder internacional.
Um artigo no Diário do Povo explicita de que forma a China encara o multilateralismo como forma de alavancar a posição dos países emergentes:

“(…) only through partaking in the multilateral institutions, can emerging economies possess the likelihood to alter the existing international power structures and operating rules. The transfer and redistribution of the global power will be the only access to globalization. The multilateral mechanism will help express this common aspiration of the emerging economies”[7].

Este redireccionamento tem sido visível ao nível da presença cada vez mais significativa do conceito de multilateralismo (duobian zhuyi) no discurso oficial e na investigação desenvolvida por académicos na China. Leif-Eric Easley salienta que tem havido desde o início da década nas revistas científicas da China uma maior saliência do estudo sobre o multilateralismo e não tanto em torno da multipolaridade (duojihua) .
Existem várias razões para esta mudança de ênfase. Easley destaca que, na verdade, a China tem beneficiado em grande medida de um sistema de uma superpotência e várias grandes potências, que tem permitido à China centrar as atenções e esforços no desenvolvimento económico.
Por outro lado, à medida que a China se assume como potência poderá não estar tão interessada na multipolarização, se isso significar a emergência dos seus rivais, como por exemplo a Índia ou a aentrada do Japão como membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Há que também ter em conta que é mais fácil projectar uma imagem positiva e construtiva a nível internacional falando de multilateralismo do que multipolaridade. Como nota Easley, o discurso sobre a multipolaridade carrega consigo traços de anti-americanismo e pode levantar preocupações entre outros estados sobre eventuais intenções revisionistas da China.
Além do mais, a valorização do multilateralismo está mais em consonância com a retórica do jogo de soma positiva, emergência pacífica e mundo harmonioso.

Conclusão

Pequim tem sido capaz de fazer uso dos instrumentos do soft power, com uma ofensiva diplomática à escala global sem precedentes, multifacetada e multidireccional. Desde meados dos anos 1990 que a China tem participado em organizações regionais, inter-regionais e multilaterais, tendo mesmo estado na dianteira em algumas dessas iniciativas.
O ímpeto multilateral da China é tributário do seu interesse nacionais e de uma certa perspectiva sobre o ambiente regional e a ordem global. A febre multilateralista de Pequim ajuda a projectar a imagem de cidadão responsável e construtivo no sistema internacional que produz soluções de soma positiva. Assim, a China espera simultaneamente maximizar a sua esfera de influência e mitigar a percepção do país enquanto ameaça. Como referimos aqui, multipolaridade e multilateralismo são conceitos que se complementam, num mundo cada vez mais interdependente. O sistema é menos unipolar e estar a caminhar para a multipolaridade - ou pelo menos para uma situação de uma superpotência como vértice de uma pirâmide em que outros actores assumem um papel cada vez mais relevante. Sendo assim, é normal que os vários actores olhem para as instituições multilaterais como instrumentos de reforço do seu poder relativo e como mecanismo que poderão reger o convívio de um sistema inter-estatal em mutação. Uma das questões que mais tem animado o debate em curso é se esta postura tem como força propulsora os interesses nacionais apenas ou ambições normativas. Sem certezas, podemos inferir, com Thomas G. More, que o multilateralismo resulta de uma escolha estratégica, no sentido e que em alguns casos a China promoveu o multilateralismo como veículo de integração e noutros como forma de prevenir que este se tornasse num instrumento contra os seus interesses.




[1] Ver Kenneth N. Waltz, Theory of International Politics. McGraw Hill. New York: 1979.

[2] Joseph S. Nye Jr, Soft Power: The Means to Success in World Politics by Joseph S. Nye. New York, Public Affairs, 2004.

[3] Giovanni Grevi, The Interpolar World: a New scenario, Occasional Paper - n°79, June 2009, Institute for Security Studies.

[4] Citado por Yong Deng, China’s Struggle for Status”, Cambridge University Press, New York, 2008, p.45.

[5] Avery Goldstein, “The Diplomatic Face of China’s Grand Strategy : A Rising Power’s Emerging Choice”, China Quarterly, 2001

[6] Joshua Kurlantzik, “Charm Offensive: How China's Soft Power Is Transforming the World”, Yale University, New York, 2007.

[7] Li Hongmei, “China's embrace of multilateral institutions: from a have-to to an active diplomacy”, People’s Daily, June 23, 2009. Disponível em http://english.people.com.cn/90002/96417/6684316.html.

Saturday, November 08, 2008

Rumo a um "quanmindang"?

José Carlos Matias

Texto Publicado no dia 06/11/2008 no jornal Hoje Macau

A Constituição do Partido Comunista Chinês (PCC) não deixa margem para grandes dúvidas. Logo no primeiro parágrafo do programa geral do PCC, é referido que o partido é “a vanguarda da classe trabalhadora do povo e da nação chinesa”. Uma formulação de cariz marxista-leninista que é completada logo de seguida com a declaração que o PCC lidera a promoção do “socialismo com características chinesas e representa as forças produtivas avançadas”, numa alusão quer a Deng Xiaoping, quer à Teoria das Três Representaçãoes formulada por Jiang Zemin. A forma como o PCC tem evoluído com os tempos e como abandonou a lógica classista operária-camponesa para abraçar a economia de mercado e integrar nos seus quadros a burguesia (forças produtivas avançadas) tem suscitado um debate alargado entre os observadores do PCC sobre a natureza do Partido e os caminhos que esta organização com mais de 70 milhões de militantes poderá seguir no curto e médio prazos.

Um Partido de e para todos?

Partindo da premissa que o Partido, de forma pragmática, tem estado em simultâneo a moldar a transformações sócio-económicas e a adaptar-se a elas, será que estamos no processo da transformação do PCC num “quanmindang” (全民党), ou seja num “partido para todas as pessoas”, no sentido de ter abandonado exclusivamente o eixo composto por operários, camponeses, soldados e burocratas (“revolucionários profissionais”)?
Neste processo é interessante verificar que a liderança do PCC tem apostado simultaneamente em estratégias de reforço da auscultação de elementos e forças sociais externas ao partido e na cooptação para a orla do Partido - e consequentemente do poder - de intelectuais que, em tese, poderiam constituir uma ameaça. Como ponto de partida (e chegada) para este debate estão aspectos centrais como a manutenção do Partido Comunista Chinês como força de vanguarda na sociedade, no estado, com legitimidade e agilidade para “acompanhar os tempos”.

Aprender com virtudes e erros alheios

Na preparação para os vários cenários que podem surgir, ao longo dos anos 1990 e desde o início desta década, a Escola Central do Partido tem estudado não apenas as experiências dos partidos comunistas da ex-União Soviética e dos seus satélites, como de regimes de democracia mais musculada em que um único partido deteve o poder durante décadas, ou casos de democracia de tipo ocidental onde o mesmo se tem passado. Assim, foram analisadas situações como o People’s Action Party de Singapura, o UNMO da Malásia, o Partido Nacional Democrático do Egipto ou o Partido Liberal Democrático no Japão. Em “Chinese Politics in the Hu Jintao Era”, Willy Lam dá conta das conclusões dessas análises. Em primeiro lugar, a democracia não é um pré-requisito para um partido continuar no poder, particularmente em países com tradição confucionista, em países como Singapura e o Japão. No entanto, nos critérios de sobrevivência estão aspectos como a aparência, ou mesmo substância, de servir as pessoas comuns, uma administração eficiente e relativamente incorrupta, reacção rápida a situações de crise sociopolítica e a capacidade para cultivar uma base alargada da sociedade que sustente e apoie o “status quo”.
David Shambaugh no elucidativo “China´s Communist Party: Atrophy and Adaptation” , realça a forma como a aprendizagem e o estudo do colapso dos Partidos Comunistas do Bloco de Leste e de regimes de democracia musculada e partido único “de facto” influenciou o comportamento do Partido Comunista Chinês desde o final dos anos 1980.

Uma “estabilidade dinâmica”

Para Shambaugh o Partido Comunista Chinês tem procurado colocar em prática uma lógica de “estabilidade dinâmica”, no sentido em que o termo é referido por Kenneth Lieberthal. Para se manter relevante numa sociedade chinesa cada vez mais exigente e diversa, o PCC tenderá a desenvolver uma espécie de leninismo consultivo. Ou seja, através da institucionalização de processos de auscultação pública de sectores externos ao Partido (o que tem acontecido gradualmente) e do reforço do papel e dos poderes da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), um órgão mais plural, que está presente na arquitectura da República Popular da China desde a sua fundação. Não se trata de ceder o monopólio do poder, mas sim de “alargar o espaço democrático” entre o estado e a sociedade como referiu o próprio Wen Jiabao. Shambaugh especula sobre formas de concretizar essa intenção: desde a inclusão de aspectos do segundo sistema, como a eleição de deputados pela via indirecta; passando pelo alargamento de poderes da Assembleia Popular Nacional, pela fusão da APN com a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, ou pela concessão de maior autonomia aos “Partidos Democráticos Patriotas” autorizados por Pequim. Shambaugh considera que “Hu e Wen não estão abertos à competição no sistema, mas estão a tentar aumentar a consulta a elementos externos”, de forma a melhorar os canais de comunicação para fora das paredes (que não são de vidro) do Partido. Isso “poderá ajudar a melhorar a imagem e legitimidade do Partido no curto prazo”, mas “no longo prazo será necessário introduzir elementos competitivos no sistema”.

Tubos de ensaio

Que elementos competitivos poderão ser esses? Do ponto de vista da competição externa ao Partido Comunista Chinês, as eleições para os comités de aldeia, que têm acontecido ao longo dos últimos vinte anos, em que existem listas alternativas às promovidas pelas estruturas locais do PCC são exemplos de experiências (de)limitadas de democracia de base. Por exemplo, na localidade de Xinhe, em 2005, o secretário local do Partido promoveu três dias de encontros de consulta democrática que incluíram a discussão em pormenor do orçamento da vila, seguindo a lógica dos orçamentos participativos. Para Joseph Fewsmith parece ser claro que “é no interesse da liderança central do Partido e dos cidadãos em geral aumentar os limites aos poderes dos dirigentes locais”.
Já Cheng Li olha para o topo da estrutura do Partido Comunista Chinês e identifica sinais que podem levar à institucionalização de facções dentro do Partido, num processo de democracia intra-partido (“dangnei minzhu”). O autor identifica duas grandes facções dentro do PCC. Por um lado a coligação “populista”, onde pontificam o presidente Hu Jintao e o primeiro-ministro Wen Jiabao. Neste grupo estão incluídos muitos dos antigos dirigentes da Liga da Juventude Comunista e líderes do Partido em zonas mais pobres. Aliás, esta coligação tende a defender as províncias do interior que menos têm beneficiado com as reformas económicas. Não também por acaso que esta sensibilidade tem estado a promover o reforço das políticas sociais e de apoio às zonas rurais. Por outro lado, Cheng Li, identifica a “coligação elitista”, liderada por dirigentes ligados à chamada facção de Xangai, que é vista como próxima do ex-presidente Jiang Zemin e do ex-vice-presidente Zeng Qinhong. Neste grupo pontificam vários “princelings” (filhos de antigos dirigentes do Partido Comunista Chinês), haiguipai (retornados que estudaram no estrangeiro) e classes empresariais. Com base nesta análise, Cheng Li argumenta que dentro de quinze a vinte anos o facciosismo poderá institucionalizar-se, reforçar a democracia interna e, num cenário de reforma política significativa, no longo prazo, servir de base para um sistema bipartidário.
Seja como for, é importante acompanhar o debate sobre os mecanismos de consulta e de “democratização” dentro e fora do Partido Comunista Chinês. Os autores aqui referidos identificam tendências de um processo que por vezes passa despercebido. Para já, o que perece certo é que, citando David Sambaugh, “está a emergir um Partido-Estado mais eclético”. E como aconteceu com a evolução económica, “o sistema político chinês vai incorporar aspectos externos e endógenos numa fórmula original e híbrida”.

Friday, October 31, 2008

ASEM Assim

Texto Publicado no jornal Hoje Macau em 23-10-2008

José Carlos Matias

Este fim-de-semana, líderes dos 27 países da União Europeia, das 10 nações da ASEAN – Associação das Nações do Sudeste Asiático – juntamente com a China, Japão, Coreia do Sul, Mongólia, Índia e Paquistão encontram-se em Pequim para a sétima cimeira do ASEM (Asia-Europe Meeting). Doze anos após o primeiro encontro, muito se tem escrito sobre a natureza deste fórum de diálogo inter-regional de características únicas e potencialidades imensas, mas que pouco tem produzido em termos de resultados concretos.
Desta vez, no entanto, tendo a crise financeira internacional como pano de fundo, o encontro ASEM bem que poderia dar indicações sobre medidas globais para fazer face àquela que é considerada a pior crise financeira desde a II Guerra Mundial. A UE tem clamado por uma reforma do sistema financeiro global. Em Pequim, poderiam ser dados alguns sinais concretos. Tanto mais que na capital chinesa estão presentes dirigentes de países que somam 3870 milhões de pessoas, ou seja o equivalente a 58 por cento da população mundial. Neste grupo apenas faltam a Austrália, Rússia, Estados Unidos, Brasil e África do Sul para estarem representados os países mais industrializados e as potências do mundo em desenvolvimento. Numa altura em que o mundo se torna, nas palavras de Fareed Zakaria, gradualmente “Pós-Americano” e num século que vai ser marcado, de acordo com Kishore Mahbubani, pelo “Hemisfério Asiático”, que função papel e relevância tem o ASEM? Mais: em que medida interessa às várias partes envolvidas a criação de uma rede institucional mais forte e o aprofundamento desta interessante dinâmica inter-regional que teve início em 1996?

ASEM cada vez maior

A ideia inicial foi lançada pelo então primeiro-ministro de Singapura, Goh Chok Tong. Em meados dos anos 1990, quando a poeira do fim do mundo bipolar assentara, um diálogo entre a maior potência comercial do mundo e a Ásia Oriental onde residiam (e residem) as economias emergentes mais dinâmicas era visto como lógico, útil e pleno de potencialidades. Na primeira cimeira, em Banguecoque, na altura ainda com apenas 28 países, o ASEM lançou as pedras para três iniciativas centrais: lançar um plano de Promoção de Investimento, criar o Asia-Europe Business Forum, a Asia Europe Foundation e o Asia Europe Technology Centre
A primeira cimeira beneficiou de ventos de optimismo face a este novo tipo de relacionamento nas relações internacionais. O diálogo tocou assuntos tão diversos como o multilateralismo, reforma das Nações Unidas, diálogo inter-cultural, cooperação tecnológica, ambiente, combate à pobreza, educação, além do comércio e investimento, entre outros.
Ao longo das seis cimeiras já realizadas o número de participantes foi aumentando, à medida que a UE se alargava à Europa de Leste. No ano passado, a Índia, Paquistão e Mongólia foram convidados e aderiram ao ASEM, dando uma nova dimensão inter-regional e trans-reagional a este fórum: o que começou por ser um encontro entre a Europa Ocidental e a Ásia Orienta, passou a incluir, devido ao alargamento da UE, a Europa Central e parte do leste europeu e – mais importante – as duas maiores potências da Ásia do Sul. Com tantos membros, este clube tornou-se ainda mais heterogéneo e um chapéu debaixo do qual se movimentam sub-dinâmicas regionais, bilaterais e inter-regionais. No contexto da ASEM há desde o início dois processos que tinham tido início anteriormente, mas que se desenvolveram e aprofundaram ao longo destes doze anos: a relação UE-ASEAN e a dinâmica ASEAN Mais Três – Sudeste Asiático coma China, Japão e Coreia do Sul. Por outro lado, subjacentes ao Encontro Ásia Europa estão as relações UE- China e recentemente Bruxelas-Nova Deli. Além disso, este tipo de organizações multilaterais abrangentes são adequadas para que problemas bilaterais sejam dirimidos e moderados de forma bem mais eficiente do que através do mero diálogo bilateral entre dois estados. Por exemplo, espera-se que em Pequim, os dirigentes do Camboja e da Tailândia se encontrem para falar sobre o problema fronteiriço que se tem agudizado ao longo ao longo dos últimos meses.
Na base do ASEM estão quatro pontos cardeais que guiam todo este processo: informalidade, multi-dimensionalidade. Ênfase em parcerias em plano de igualdade e perspectiva dual baseada quer nos contactos de alto nível quer nas relações entre actores da sociedade (people-to-people links).

E os salto qualitativos?

As palavras, princípios orientadores e declarações de intenções têm sido estimulantes, mas, na prática, o ASEM deixa algo (bastante) a desejar. Há várias razões para que o ASEM não se tenha ainda transformado numa verdadeira organização inter-regional com um vector institucional significativo e uma rede de diálogo a vários níveis. Numa análise bem interessante, o académico alemão Jurgen Ruland salienta que, por norma, os fóruns inter-regionais são, sem excepção, superficiais, uma vez que os países envolvidos não estão interessados em investir substancialmente numa “governance” que materialize as palavras de ocasião. Por outro lado, quanto mais nações estiveram envolvidas, mais dispersos são os interesses e o sentido estratégico das relações. Já Christopher Dent considera que o ASEM é um exemplo de um “regime cooperativo” que incorpora aspectos da “interdependência complexa que prevalece no sistema internacional”. Face a esta análise, José Sales Marques perguntava, numa conferência realizada há três anos pelo Fórum Luso-Asiático, em Macau, “onde estão os vários níveis de diálogo permanente? E a sociedade civil?”.
Numa lógica de balança de poderes internacionais, o ASEM deve ser entendido numa fase inicial como uma resposta ao processo do APEC – Asia Pacific Economic Cooperation – lançado em 1989, que integra os EUA, México, Canadá, países da costa do Pacífico da América do Sul, Austrália, Nova Zelândia, China, Sudeste Asiático, Japão, Coreia do Sul e Rússia. A atitude unilateralista de Washington nos anos da Administração Bush “empurrou” os países asiáticos que fazem parte dos dois blocos para a valorização dos laços com a UE.
Além das contas que se podem fazer sobre o peso absoluto e relativo de cada uma das potências sobre as restantes, o ASEM apresenta aspectos interessantes com impacto no médio e longo prazo. Por exemplo, Julie Gilson sublinha que o processo ASEM tem contribuído para a forma como o lado asiático se encara como um grupo com afinidades e interesses comuns face ao bloco europeu. Além disso, sobressai no ASEM uma dinâmica de construção de identidades através da intersubjectividade euro-asiática. Este tipo de processo é no entanto difícil de medir, sendo por vezes pouco palpável. Ou seja, será eventualmente mais visível noutra fase deste Fórum. Até lá, Jurgen Ruland pede: aprofundem-se as instituições. “Essa a é a melhor forma de desenvolver uma utilidade multilateral ao ASEM”. E, já agora, uma vez que Singapura é sede da Asia-Europe Foundation (ASEF) – Macau poderia quiçá desempenhar um papel activo em eventos e projectos de cooperação, como actor sub-nacional. Afinal estamos a falar do Encontro Ásia-Europa.

devolver o "quan" ao povo

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 09-10-2008.

José Carlos Matias

O plenário do Comité Central do Partido Comunista Chinês (CCPCC) que se reúne nestes dias é considerado o mais importante dos últimos anos. Hu Xingdou, professor no Instituto de Tecnologia de Pequim, defende mesmo que este é o “plenum” mais relevante desde o início dos anos 1990. Pode parecer exagero, mas o certo é que há razões para olhar para este encontro com a máxima atenção. O CCPCC está reunido numa altura em que o mundo treme com a crise financeira internacional e num contexto de abrandamento do crescimento da economia chinesa. O conclave acontece após meses de exposição intensa da China face ao exterior, com o terramoto de Sichuan, os Jogos Olímpicos e escândalo do leite contaminado com melamina. Além do mais, em Dezembro passam 30 anos sobre o famoso discurso de Deng Xiaoping perante o CCPCC, quando pediu aos seus camaradas para emanciparem as mentes (do maoísmo) e abraçarem um novo rumo marcado pelas reformas e abertura (“Gaige kaifang”). Nos próximos quatro dias, na agenda de trabalhos, está o novo impulso que a liderança Hu-Wen quer dar às reformas, especialmente no que diz respeito ao mundo rural, onde vivem ainda mais de 700 milhões de pessoas. Em concreto que reformas deverão ser discutidas? A nova fase da “emancipação das mentes” implicará reformas políticas e administrativas com algum impacto?

Depois do “li”, venha o “quan”

Apesar de todas as transformações, interpretar os sinais políticos na China ainda é, parafraseando o sinólogo Simon Leys (pseudónimo do belga Pierre Ryckmans) algo semelhante à “arte de interpretar inscrições inexistentes escritas com tinta invisível numa página em branco". Em todo o caso, vale a penar anotar alguns sinais e declarações. Desde logo as palavras do líder do PCC na importante província de Henan. Zhang Chunxian afirmou que se nos últimos 30 anos a prioridade foi devolver o “li” (利 – no sentido de interesses económicos) às pessoas, agora o importante é devolver o “quan” ao povo. Numa tentativa de interpretar estas palavras, Wu Zhong, analista do Asia Times, salienta que o conceito de “quan” (权) é ambivalente: tanto pode traduzir-se por direitos como por poder. Provavelmente Zhang preferiu, propositadamente, não desfazer a dúvida.
Uma primeira leitura tem a ver com a prioridade anunciada pelos órgãos oficiais à agricultura. No plenum os membros da cúpula do PCC vão delinear políticas que privilegiam a China que vive no campo e que tem beneficiado menos com o processo das reformas económicas que trouxeram prosperidade sobretudo às zonas costeiras e às cidades.

A atenção ao mundo rural

O eixo Hu-Wen é conhecido por ter muito mais sensibilidade para as questões rurais que Jiang Zemin e Zhu Rongji. Pouco depois de ter assumido a chefia do partido e do estado, a Quarta Geração (“disidai”) tomou várias decisões com vista à redução substancial da carga fiscal imposta aos camponeses e às suas famílias. No ano passado, a Assembleia Popular Nacional aprovou um pacote de medidas que incluiu a gratuitidade do ensino primário para as famílias que vivem nas zonas rurais e uma expansão do sistema cooperativo e cuidados de saúde. Sem dúvida que este conjunto de medidas – corte drástico da carga fiscal e apoios na saúde e educação – constituíram passos positivos no apoio às zonas rurais. Mas isso não fez com que as revoltas e protestos no campo tenham aparentemente diminuído. A aquisição por parte dos governos locais de terras usadas (mas não detidas) por camponeses para serem entregues a projectos imobiliários ou industriais tem gerado protestos por vezes violentos. De resto, a instabilidade e os problemas que afectam as zonas rurais têm sido questões plenamente assumidas pela liderança chinesa em inúmeras ocasiões. O percurso de Hu Jintao, que chefiou o partido em províncias do interior e menos abastadas como Guizhou e Tibete, e o talento de Wen Jiabao para “falar ao coração” dos camponeses são factores que potenciam a promoção deste tipo de políticas. Por outro lado, a ausência de medidas de promoção do bem-estar dos direitos da população que vivem nas zonas rurais poderia colocar em causa não só a estabilidade social como a legitimidade do Partido. Contudo, essa necessidade de preservar alguma “harmonia social” implica outros passos mais audazes. Wu Zhong indaga se “quan” poderá significar direitos ligados à propriedade rural. Actualmente, os camponeses podem “arrendar” o uso da terra através de um contrato normalmente válido por 30 anos, mas, na prática, os governos locais podem resgatar uma propriedade em nome do interesse do estado. Isso acontece muitas vezes sem que os camponeses tenham uma compensação adequada, o que tem gerado inúmeros protestos.

Que direitos e poderes?

Sendo muito improvável que sejam dados passos no sentido da privatização dos terrenos agrícolas, faz todo o sentido que sejam levadas a cabo mudanças no sistema de gestão e uso das terras por parte dos camponeses. Por exemplo, Wu especula se o direito de uso dos terrenos poderá ser atribuído às aldeias colectivamente. Assim, sempre que uma empresa quisesse usar essa propriedade teria que negociar com os líderes dos comités de aldeia. Um cenário destes poderia retirar a dirigentes e membros locais algum (ou muito) espaço de manobra para os conluios que tantos protestos têm causado.
Numa outra interpretação, o “quan” enquanto poder poderá implicar o reforço de mecanismos de auscultação e consulta quando do processo de tomada de decisões. É nesse sentido que devem ser entendidas as palavras de Hu Jintao e Wen Jiabao quando salientam que é preciso aprofundar a “democracia socialista com características chinesas”. Tudo poderá passar pelo que Yu Keping chama de democratização gradual. Em “Ideological Change and Incremental Democracy in Reform-Era China”, Yu, que ficou famoso pelo texto “Democracy Is a Good Thing”, considera que sendo a participação cívica essencial na democracia política, a melhor forma de avançar com as reformas políticas é “alargar a participação política por parte dos cidadãos”. Sendo esta uma asserção de “La Palisse”, não deixa de ter algum significado considerando que Yu é director adjunto do Departamento de Tradução do partido Comunista Chinês e que tem sido a voz mais audaz, nas estruturas dirigentes do Partido, na defesa da “democracia” como algo de bom para a China. Democracia essa gradual, de acordo com as características e necessidades da China e, claro, tendo o PCC como líder em todo o processo.

O “li” também inspira cuidados

Além de se poder especular sobre que tipo de “quan” será devolvido ao povo, é oportuno também ter em conta que o “li” (interesse económico) está a passar por um período diferente dos tempos em que o céu parecia o limite. Wen Jiabao tinha avisado em Fevereiro que este seria um ano difícil para a economia chinesa. Tudo começou com as tempestades de neve que paralisaram parte do país durante vários dias. Ao mesmo tempo, a inflação começara a atingir níveis alarmantes, sobretudo no custo dos alimentos. Com a subida dos custos de produção, valorização do yuan e com a perspectiva de uma crise económica nos mercados de consumo e exportação da maioria dos bens produzidos na China, certamente que “o motor” que tem gerado crescimentos anuais de cerca de dois dígitos inspira cuidados.

Um Novo Salto

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 25-09-2008

José Carlos Matias

Depois de, em 2003, na missão Shenzhou V, ter colocado o primeiro chinês no espaço - Yan Liwei o primeiro “taikonauta” – e de em 2005 ter colocado dois astronautas em órbita, na missão Shenzhou VI, com um ano de atraso face ao previsto inicialmente, a China dá um passo importante ao lançar três astronautas (taikonautas) para o espaço, cuja missão é realizar um “Space Walk”, ou seja realizar operações fora da nave espacial fora da cápsula.
Caso Pequim consiga cumprir o calendário previsto, até 2020 a China poderá ter em órbita um Laboratório Espacial. Pouco depois, os “taikonautas” poderão alunar, no culminar de uma “Longa Marcha”, que teve início em meados dos anos 1950, quando Qian Xuesen regressou à China, oriundo do Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos EUA, com o sonho de colocar o seu país ao lado dos EUA e da URSS como potência espacial. O processo foi tortuoso até 1999, quando Pequim lançou a primeira missão espacial não-tripulada a Shenzhou I.
O que está por detrás desta dinâmica chinesa no espaço? Que vantagens traz um programa espacial com custos financeiros muito avultados e com benefícios pouco óbvios no curto prazo?

Benefícios múltiplos

Um olhar sobre o “Livro Branco das Actividades Espacial da China” permite desde logo salientar que o programa espacial está ao serviço da estratégia compreensiva de desenvolvimento do país. Isto aplica-se quer no plano doméstico, quer na política externa chinesa. Joan Johnson-Freese lembra que aspectos como “orgulho doméstico, prestígio internacional, desenvolvimento económico e desenvolvimento de tecnologia de uso dual (científico e socioeconómico) estão na base da organização de missões espaciais tripuladas”. Além destes factores, é sabido que os programas espaciais estão normalmente relacionados com a modernização militar. Ou seja, um programa espacial tem efeitos multiplicadores e multi-direccionais que podem despoletar um ciclo virtuoso na economia, ciência e nas forças de defesa.
No caso da China, cada um destes factores encaixa-se nos desafios e ambições que o país tem pela frente. Como já se verificou no passado com as naves Shenzhou V e VI, o sucesso das missões é explorado internamento como forma de promover o orgulho nacional e o patriotismo. Naturalmente que esta projecção de poder tem igualmente uma função externa no processo em curso de emergência do país enquanto potência potencialmente capaz de ombrear no futuro com os EUA e a Rússia no espaço. A este nível, o primeiro efeito é regional: Pequim tomou a clara liderança no contexto asiático face às duas outras potências regionais: Índia e Japão. No que diz respeito aos benefícios económicos, os programas espaciais geram novas possibilidades de inovação tecnológica que mais tarde pode ser aplicada na sociedade civil e na economia, tornando-a mais dinâmica e moderna, em virtude do investimento feito em investigação e desenvolvimento.

As palavras e os actos

O programa espacial chinês deve também ser entendido tendo em conta a ambição da China de fazer parte da Estação Espacial Internacional, um projecto que inclui as agências espaciais da Europa, Rússia, EUA, Japão e Canadá. Pequim não conseguiu ainda entrar neste clube sobretudo devido à oposição de Washington que, como que olhando-se ao espelho, duvida dos objectivos pacíficos da estratégia da China para o espaço. Aliás, a questão da militarização do espaço tem contornos “orwelianos”. Por um lado, a China compromete-se a utilizar o espaço para fins pacíficos ao mesmo tempo que em Janeiro de 2007 realizou um teste anti-satélite com um míssil balístico que destruiu um satélite meteorológico desactivado. Por outro lado, os EUA duvidam das intenções de Pequim, quando simultaneamente em 2006 o Office of Science and Technology Policy do governo norte-americano referia que regimes de controlo e restrição da utilização de armas no espaço “não devem impedir os direitos dos EUA de investigar, desenvolver e testar operações no espaço de acordo com os interesses nacionais”. No que diz respeito à utilização de armas nucleares no espaço, ainda que rejeite a soberania de qualquer nação sobre o espaço, um documento orientador das políticas espaciais dos EUA - American National Space Policy paper – indica que os Estados Unidos devem desenvolver actividades nesse sentido, caso isso esteja de acordo com a estratégia norte-americana ao nível da segurança interna e dos interesses da política externa.

Desconfiança sino-americana

As preocupações de Washington face às ambições do programa espacial chinês tinham sido já evidentes quando os EUA criticaram a União Europeia por ter firmado um acordo com Pequim em que a China se tornou no principal parceiro externo no desenvolvimento do sistema europeu de navegação e posicionamento – o Galileu. Nos EUA, o cenário de tropas chinesas utilizarem um sistema de navegação europeu - de aliados - em operações militares contra forças apoiadas pelos EUA num cenário hipotético de guerra no estreito de Taiwan é visto como inaceitável.
O olhar de desconfiança não é um exclusivo nos EUA. Na Índia, A.V. Lele, analista do Instituto indiano de Análise e Estudos de Defesa alerta que o programa espacial chinês que inclui satélites geoestacionários e veículos de lançamento, estações espaciais terrestre e um sistema de navegação - o Beidou II -, vai contribuir para a modernização militar do Exército Popular de Libertação (EPL) e, em consequência, será uma potencial ameaça para os EUA e para os aliados dos norte-americanos na região.
Tal como acontece com certas análises nos EUA sobre a emergência da China como ameaça, parte do que é referido por alguns analistas de “think tanks” nasce de um exagero sobre as reais capacidades da China. Além disso, é evidente também que as lógicas da China-Ameaça e do “Perigo Amarelo” no espaço também intoxicam o debate.
Em Pequim, existe uma abordagem dúbia e realista. Por um lado, Pequim pede esforços para que seja firmado um acordo internacional que possa proibir a utilização de armas no espaço; por outro realizou o teste anti-satélite e parece, em privado, perceber que podemos estar num ponto sem retorno neste processo. Em 2004, um documento do EPL referia que na preparação para ganhar a guerra da informação e alta tecnologia, dominar o espaço é essencial.

Dos exageros à importância da cooperação

Não desvalorizando o que está em causa, vale a pena prestar atenção ao que tem dito Gregory Kulacki, analista da Union of Concerned Scentists. Em primeiro lugar, muita da informação que está a servir de base para o que dizem alguns analistas nos EUA tem por base artigos de credibilidade e autoridade muito duvidosa. Por exemplo, em 2004 foi noticiado que a China estava a desenvolver micro-satélites parasitas. Contudo a fonte dessa informação era um blogger desconhecido. Após ter analisado centena de artigos e documentos, Kulacki concluiu que nos EUA muitos autores não sabem distinguir fontes credíveis de não-credíveis e artigos com autoridade dos que apenas expressam rumores ou opiniões.
Quer isto dizer que existem graves falhas de comunicação e mal-entendidos sobre as intenções de cada um dos lados. No jogo das percepções, a realidade muitas vezes não se cola às narrativas mais sensacionalistas. Um acordo sobre o desarmamento no espaço - que já foi pedido pela Rússia e pela China, mas recusado pelos EUA – seria um passo importante. É necessário criar regimes seja no âmbito da ONU ou do clube de potências espaciais. Quanto aos EUA e a China, não seria má ideia a criação de um mecanismo de diálogo estratégico sobre questões espaciais, à semelhança do que acontece com os assuntos relacionados com a economia e finanças. Por si, poderia não dissipar a desconfiança mútua, mas pelo menos institucionalizaria o diálogo sobre algo tão sensível.

Sunday, September 14, 2008

A crise na Geórgia e as relações sino-russas

Texto publicado no Jornal Hoje Macau em 11/09/2008

José Carlos Matias

As parcerias estratégicas são testadas em momentos-chave. Por exemplo, o eixo Mosco-Pequim foi posto à prova durante a Cimeira da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), no final de Agosto em Dushubane, no Tajiquistão. Poucos dias depois da Rússia ter reconhecido a independência das repúblicas separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, a OCX esteve reunida, numa momento em que Moscovo estava isolada internacionalmente a propósito do passo inesperado de oficializar o reconhecimento das duas repúblicas que formalmente fazem parte da Geórgia. Os parceiros da Rússia nesta organização inter-governamental, a China e as quatro antigas repúblicas soviéticas da Ásia central – Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguistão e Cazaquistão – emitiram uma declaração comum em que é realçado o papel “activo da Rússia na região”, mas salientam também que desejam que a crise seja resolvida por meios pacíficos e que deve ser tida em conta a integridade territorial das partes envolvidas, não sendo, assim, dado o aval ao reconhecimento da independência das repúblicas russófilas. A declaração não surpreende, mas é ilustrativa do posicionamento da China no plano internacional e a forma como as quatro repúblicas se encaixam entre os vizinhos gigantes.

O que quiseram dizer?

Alguns analistas concluíram que em Dushane teve início um novo período de algum resfriamento das relações entre a Rússia e a China. Outros consideram que a ambiguidade e a neutralidade da China era esperada em Moscovo, pelo que a declaração não passou de um epifenómeno que não irá alterar uma aproximação em curso inevitável. Em pleno movimento de placas tectónicas na geopolítica, é difícil prever quais serão os reajustamentos, mas será no mínimo manifestamente exagerado falar de uma nova Guerra Fria ou de um qualquer novo cisma sino-russo.
Em primeiro lugar, Pequim não poderia agir de outra maneira. Por várias razões. Desde logo, a resposta russa ao aventureirismo irresponsável de Mikeil Saakashvili, que aconteceu no dia em que o mundo olhava para Pequim, para a cerimónia de abertura, incluiu a incursão em território da Geórgia, além dos limites territoriais da Ossétia do Sul.

A coerência de Pequim

Uma escalada do conflito entre Moscovo e Tiblissi vai claramente contra os interesses da China no plano internacional e cria um precedente perigoso. Do ponto de vista da política externa chinesa, o passo dado pela Rússia de reconhecimento das repúblicas separatistas e um cenário de aumento da tensão entre Moscovo e o Ocidente poderão levar a um desequilíbrio no sistema internacional de segurança. Uma situação que não condiz com a estratégia de emergência pacifica delineada por Pequim, que necessita de um ambiente externo estável. Um cenário de uma nova Guerra Fria poderá (poderia) forçar a China a tomar partido em algumas situações sensíveis, o que vai contra o interesse nacional chinês, tanto mais que no processo de desenvolvimento económico, a China precisa tanto dos mercados, capitais e tecnologia dos EUA como dos recursos naturais e energéticos russos.
Rana Mitter, da Universidade de Oxford, sublinha que “uma nova Guerra Fria iria enfraquecer as instituições globais onde a China tem vindo a ganhar peso e influência”. Ou, nas palavras de Xia Yishan, do International Studies Institute, um “think tank” do Ministério chinês dos Negócios Estrangeiros, “a China prefere claramente um mundo em que as grandes potências não pisem as linhas vermelhas”.
Por outro lado, é óbvio que a RPC nunca poderia apoiar a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia, uma vez que defende há décadas os princípios da integridade territorial e da não ingerência – pedras de toque no posicionamento chinês no mundo que servem de base para toda a cooperação internacional. Nesse sentido, uma declaração em que a China apoiasse Moscovo colocaria Pequim perante um dilema moral e uma duplicidade difícil de entender face aos problemas internos que tem em Xinjiang e no Tibete.

Um teste à natureza da OCX

Naturalmente que há outras formas de olhar para o assunto. Se o Ocidente – leia-se os EUA – centrarem de novo as atenções e esforços numa Rússia neo-imperial que constitui um perigo para a estratégia de expansão da NATO, a “Ameaça-China” sai do radar das prioridades de Washington. Uma situação que convém a Pequim. Além disso, foi visível na Cimeira da OCX a influência da China sobre as antigas repúblicas soviéticas do Cáucaso na declaração conjunta. Fazendo parte do que Moscovo considera o seu espaço natural de influência, Tajiquistão, Uzbequistão, Cazaquistão e Quirguistão preferiram não acompanhar a Rússia no apoio à independência das repúblicas separatistas. A própria OCX, que foi formada em 2001 - na sequência do Shanghai Five – tem como inimigos o terrorismo, o separatismo e extremismo.
Tudo isto entronca na forma diferente como a China e a Rússia encaram a OCX: ao passo que os chineses olham para esta organização como mais um instrumento multilateral em que podem criar estabilidade na vizinhança, controlar o apoio de grupos fundamentalistas ao separatismo uigur, mitigar disputas bilaterais e garantir acesso a fontes de energia e matérias primas, Moscovo procura garantir a manutenção da esfera de influência militar e económica numa zona crucial em termos geo-estratégicos.
Mark N. Katz, analista do site Eurasia.net, considera que não será surpreendente se Moscovo comece a desvalorizar a OCX, passando dar primazia a outros instrumentos como a Comunidade de estados independentes ou a Organização do Tratado Colectivo de Segurança.

Algo mudou?

Em todo o caso, é ainda cedo para perceber o impacto da Cimeira de Dushubane nas relações sino-russas. Yu Bin escreve no Asia Times Online que, na verdade, no essencial pouco muda.
Em primeiro lugar, a neutralidade (ambiguidade estratégica) de Pequim vem no seguimento da atitude chinesa no plano externo desde os anos 1980. Em segundo, a declaração mostra que a OCX está ainda muito longe de ser uma NATO do Oriente, como alguns autores previam. Na verdade, é uma comunidade de países que “dormem na mesma cama, mas com sonhos diferentes”. Na Carta da OCX não há qualquer obrigação de um estado membro comprometer-se militarmente com os restantes da mesma forma que existiu no Pacto de Varsóvia ou existe na NATO.
Tendo em conta tudo isto, Yu considera que “a declaração até tem bastante significado para os russos, na medida em que apoia o papel de promoção de paz e cooperação de Moscovo na Região”. Ou seja, para a Rússia a ausência de apoio ao reconhecimento da independência era esperada e a declaração satisfaz a diplomacia russa. Yu Bin, professor na Universidade do Ohio, nos Estados Unidos, assegura por isso que a declaração e a Cimeira de Dushubane não assinalava, de modo algum, “o fim da parceria estratégica com a China”, lembrando que ao longo dos últimos 30 anos Pequim tem tido uma abordagem bastante sofisticada e ponderada. A RPC não costuma tratar os outros estados segundo a lógica dual estado amigo-inimigo, preferindo ser pragmática e analisar as situações caso-a-caso.
Quer isto dizer que Pequim agirá de acordo com os movimentos das placas tectónicas na Eurásia. Sendo certo que beneficia de um ambiente estável sem movimentos bruscos e em que possa jogar quer com o reforço das instituições multilaterais, quer com os mecanismos de consulta dos diálogos bilaterais. É também por isso que, pelo menos no curto e médio prazo, a China é uma potência emergente que contribui para um ambiente de estabilidade e segurança na Ásia Oriental e na Eurásia.


Sunday, August 31, 2008

O Grande SAlto, 50 anos depois

José Carlos Matias

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 28-08-2008


“No ano passado a produção de aço foi de 5.3 milhões de toneladas. Consegues duplicar este valor este ano?”
Mao Zedong para o ministro da metalurgia da China, em Junho de 1958


“Está bem”, respondeu o ministro. Estávamos no início do processo de industrialização forçada que ficou conhecido com “O Grande Salto em Frente” (Dàyuèjìn). Em Janeiro de 1958, Mao tinha dado a conhecer o plano de modernização súbita da agricultura e da indústria em simultâneo, com o objectivo da China ombrear e mesmo ultrapassar os níveis de desenvolvimento das nações mais ricas do mundo. Para a história, fica a Grande Fome de 1959-61, período em que terão morrido 30 milhões de pessoas.
O Grande Salto, aceite hoje pela grande maioria dos historiadores e analistas, mesmo entre os neo-maoísta, como um desastre, marcou o fim do período inicial da Revolução em que ainda coexistia um regime de economia mista e um seguimento incondicional do caminho traçado pela União Soviética. O socialismo na República popular da China (RPC) sempre teve características que o diferenciaram das restantes experiências de socialismo de estado. Mas terá sido a partir do Grande Salto em frente que o Maoísmo se autonomizou como prática que diferia do socialismo burocrático de estado da URSS. Em 1956, antes do início do Grande Salto, já havia sido experimentada uma primeira fase de colectivização forçada com resultados bastante negativos. Dentro do PCC, as vozes mais moderadas, inspiravam-se no famoso discurso secreto do XX Congresso do PCUS em que Khruschev denunciara os crimes do estalinismo a desastrosa colectivização agrícola forçada levada a cabo pelo “Pai dos Povos”.

Um projecto de poder

Maquiavelicamente, Mao promoveu a Campanha das Cem Flores em que era incitada a crítica ao Partido e ao estado, um movimento que antecedeu outra campanha, de sentido inverso, a Anti-Direitistas. De forma prosaica, pode dizer-se que Mao atraiu os coelhos a sair das tocas para iniciar esmagar a oposição interna à linha estalinista-maoísta. Ou seja, a adopção e defesa por parte de Mao de políticas radicais de colectivização e de um reforço do totalitarismo tinha como pano de fundo a consolidação do poder dentro do Partido e do Estado – a mesma lógica está subjacente à Revolução Cultural poucos anos mais tarde. Jung Chang e Jon Halliday em “Mao: a História Desconhecida”, identificam vários momentos ao longo do percurso de Mao, bem antes da Revolução, em que o líder conspirou para eliminar ou afastar quem dentro do PCC e do movimento camponês e operário representava perigo para o seu projecto de poder. E o que realmente ambicionava com o Grande Salto em Frente? Jung e Halliday retratam um Mao desumanizado que promove a morte e a destruição a favor da insanidade do seu projecto socialista. “Temos de construir navios para chegar a São Francisco, Japão ou Filipinas”. Ou seja, mais do que “ultrapassar os níveis de desenvolvimento dos países capitalistas”, Mao desejava “dominar o mundo”, às custas do “homem novo”, o camponês totalmente dedicado à construção do socialismo, “livre” do feudalismo e da tradição confuciana.

Contra os pardais, fundir, fundir

Ao longo dos três anos do Grande Salto, a irracionalidade económica tomou conta das políticas agrícolas e industriais. Em Julho de 1957, o Diário do Povo proclamava:”podemos produzir quanta comida quisermos”.Mao já falava sobre “o que fazer com o excedente de alimentos”. De várias províncias surgiam estatísticas super inflacionadas sobre a produção agrícola. Entretanto, estavam em marcha mega-projectos de barragens e de desvios dos cursos dos rios. Muitos desses projectos ficaram inacabados. Depois veio a campanha anti-pardais. Em meados de 1958, teve início o desvio das energias da nação para a produção de aço. Por todo o país, camponeses derretiam todos os utensílios e instrumentos que tinham à mão para contribuir para a meta traçada por Mao: de 1957 para 1958 duplicar a produção de aço. Milhões de camponeses abandonaram as actividades agrícolas para se dedicarem a produzir aço em muitos casos de fraca qualidade. Peng Dehuai, à altura ministro da defesa, insurgiu-se contra o que viu: “Os novos e velhos foram derreter aço. Para cultivar os cereais apenas vejo crianças e mulheres. Como é que vamos conseguir chegar ao próximo ano?”. O destino de Peng foi o mesmo de muitos outros que se atreveram a levantar a voz e dizer o óbvio. Afastado em 1959 do cargo de ministro da defesa, em 1966 foi torturado por Guardas Vermelhos em pleno fervor da Revolução Cultural.
A Grande Fome e o falhanço na industrialização levaram ao recuo do Grande Salto, que se estava a transformar num salto para o abismo. A Mao foram-lhe retirados poderes. Cedeu o lugar de Presidente da RPC a Liu Shaoqi, mantendo a presidência do Partido, mas agora com Deng Xiaoping a delinear as políticas sociais e económicas. Cinco anos depois, através do Bando dos Quatro, Mao lançava um contra-ataque feroz aos “contra-revolucionários” e “direitistas”, com a Revolução Cultural.
Contudo, olhar apenas para o Grande Salto como um momento de insanidade de um líder despótico e nada iluminado não ajuda a compreender o homem e as suas circunstâncias.

Menos Mao?

O colunista do Asia Times Online Henry C. K. Liu lembra que Mao foi forçado por circunstâncias geopolíticas – a saída dos técnicos soviéticos e o embargo norte-americano – a suprimir a falta de capitais coma mobilização da vasta reserva de mão-de-obra do país. Uma das heranças deixadas pelo Grande Salto foi o sistema de “Duas Descentralizações, Três Centralizações e uma Responsabilidade. Ou seja, a descentralização da utilização do investimento e do trabalho local; ao controlo sobre decisões políticas, de planeamento e investimento; e a ideia segundo a qual cada unidade básica deve ser responsabilizada perante a sua unidade supervisora.
Liu vai mais longe e chega a defender que “o Grande Salto foi bem-sucedido em várias áreas” e a questionar se a morte de 30 milhões de chineses no final dos anos 1950 se deveu às políticas de Mao, especialmente ao Grande Salto em Frente. Liu culpa a “propaganda ocidental” pela imagem trágica de Mao e do Grande Salto em Frente. A sua perspectiva é útil na medida em que enquadra bem as opções políticas tomadas pela liderança, mas deixa muito a desejar quando elabora uma estratégia de desculpabilização de algo que o próprio PCC considera um dos maiores erros desde 1949.
Por outro lado, a insistência de Jon Halliday e de Jung Chang em diabolizar todo e qualquer aspecto da vida e da personalidade de Mao não ajuda a uma compreensão plena de períodos como o Grande Salto.

Outros Saltos

Cinco décadas depois, a expressão Grande Salto é usada e abusada. Por exemplo, estes Jogos Olímpicos foram descritos como uma versão moderna do Grande Salto, ou seja da modernização forçada de uma China em ascensão como potência mundial. A coincidência de este ano passarem 50 anos sobre o Dàyuèjìn reforçou a tendência para a alegoria e o jogo semântico. Algo que bem feito até pode ter pernas para andar. Tendo sempre em conta que, como referiu Fareed Zakaria, na edição de 11 de Agosto da Newsweek , que “To say that this news China is the same as the old is to be utterly ignorant or ideological –perhaps both”.

Saturday, August 23, 2008

Novas e Velhas Esquerdas

Texto publicado no jornal Hoje Macau em 07/08/2008

José Carlos Matias

我们仍然在仰望星空
Women rengran zai yangwang xingkong*


À primeira vista, o debate ideológico na República Popular da China está moribundo. O Partido Comunista Chinês (PCC) “desincentiva” a expressão pública de vozes dissonantes que atacam ferozmente a linha oficial e imprime o ritmo de manufactura da semântica que mantém viva a perspectiva da construção do “socialismo com características chinesas”. Não deixando de ser assim, ao longo dos últimos 18 anos têm sido publicados artigos e livros na China que destoam da retórica oficial e que colocam em causa a forma como “a economia de mercado socialista” está a ser construída.
As vozes que têm mais eco no exterior são as que defendem posições liberalizadoras quer politica quer economicamente: os “desvios de direita”, na linguagem clássica Maoísta.
Do outro lado do espectro, encontramos intelectuais que apontam o dedo à via capitalista seguida pelo governo central por esta estar a contribuir para a desintegração das redes sociais e a desvirtuar a natureza do estado socialista fundado em 1949. Neste campo, destacam-se duas linhas “esquerdistas”: os Neo-Maoístas e a “Nova Esquerda”. Os primeiros perderam muito do fulgor que os caracterizou na década de 1990, ao passo que os segundos têm emergido como um movimento com alguma influência junto do governo central e da liderança do PCC.

O revivalismo Maoísta

Após a repressão violenta sobre os estudantes na Praça de Tiananmen, foi lançada uma esmagadora “caça às bruxas” junto dos sectores próximos das posições dos ex-secretários gerais do PCC Hu Yaobang e Zhao Zhiyang. Nesse período, no início dos anos 1990, os denominados movimentos Neo-Maoístas ganharam espaço em jornais e revistas e conseguiram mesmo colocar algumas figuras na chefia de ministérios. Este grupo advoga um regresso à fase anterior ao Grande Salto em Frente e à Revolução Cultural. No início dos anos 1990 lançaram campanhas ao estilo Maoísta contra o aburguesamento de sectores do Partido e contra as reformas económicas.
Estas forças continuaram a ter algum espaço em boa medida porque eram patrocinadas por figuras da Velha Guarda como Deng Liqun. O fantasma do colapso da União Soviética foi avivado durante os anos 1990. Nos seus artigos, os autores culpavam a abertura económica pela corrupção, desemprego, despedimentos de empresas estatais entretanto privatizadas e desigualdades sociais. Uma das principais publicações deste movimento, a “Contemporany Ideological Trends” resumia a posição Neo-Maoístas de forma clara: “No passado os colonialistas ocidentais usaram o ópio para nos envenenar, agora a burguesia tenta usar os seus valores para nos transformar”. O espaço para a “extrema-esquerda” diminuiu consideravelmente fruto de acção directa do próprio Deng Xiaoping, primeiro, e de Jiang Zemin, mais tarde. Durante a primeira década do Século XXI ganhou força outra sensibilidade, também à esquerda da linha oficial do PCC, mas com características diferentes.

Uma “Nova Esquerda” com características chinesas

A “Nova Esquerda” chinesa tem vindo a ganhar peso quer junto de professores e estudantes, quer de dirigentes do Governo. O termo “nova” pode enganar e levar a uma analogia com a “Nova Esquerda” europeia filha do Maio de 1968. No caso da China serve para distinguir este grupo de intelectuais da “Velha Esquerda” chinesa de raiz maoísta. Ao contrário destes últimos que se cingem ao marxismo leninismo clássico e ao Maoísmo, as referências da Nova Esquerda abrangem as obras de Immanuel Walerstein e Ferdinand Braudel ou movimentos como a Escola Crítica de Frankfurt e os Estudos Culturais.
O aspecto central das suas teses diz respeito à formulação de uma alternativa chinesa à globalização neoliberal. A “Nova Esquerda” critica ferozmente a forma como a abertura económica foi conduzida, levando a um agravamento das desigualdades sociais e ao alastrar da corrupção. Ao longo dos anos, muitos dirigentes políticos locais usaram arbitrariamente os seus poderes paras e tornarem empresários de sucesso à custa de expropriações ilegais de terras de uso colectivo de comunidades rurais para as entregar de bandeja a empresas do imobiliário. Na verdade, argumenta Wang Hui, o resultado tem sido uma aliança da elite política local corrupta com os interesses económicos e comerciais. Algo seguramente pouco socialista. Contudo, Wang aplaude a primeira fase das reformas económicas lançadas por Deng, entre 1979 e 1985. O problema surgiu, diz, quando começaram a ser destruídas as redes sociais.

A influência em Zhongnanhai

Apesar de todas estas críticas ferozes ao processo de desenvolvimento chinês, os textos da Nova Esquerda chinesa continuaram a ser publicados e a ser promovidos, especialmente através da Revista Dushu, dirigida até há um ano por Wang Hui. Além disso, as posições de Wang Hui, Cui Zhiyuan, Wang Shandong e Zhang Xudong começaram a ter eco nos círculos próximos de Hu Jintao e Wen Jiabao. Numa entrevista ao New York Times, Wang Hui esclarece a sua posição face ao estado e ao Partido: “O PCC ainda é a principal força transformadora da sociedade”. Quanto às políticas do Governo Central algumas apoiam outros não. “Depende do conteúdo das políticas”. Em 2006, Wen Jiabao proclamava a construção do “Novo Campo Socialista”, dirigindo-se às zonas rurais, como uma tarefa histórica crucial para o PCC. No mesmo discurso, o primeiro-ministro salientava a necessidade de encontrar equilíbrio entre crescimento económico e protecção do ambiente.
A declaração de Wen agradou à Nova Esquerda. Outras políticas sociais anunciadas em 2007 e 2008 contribuíram para que alguns analistas considerassem que este grupo esquerdista estava a ganhar cada vez mais peso junto do poder. O facto de Wen Tiejun, considerado próximo da Nova Esquerda, ter estado em sessões de “brainstorming” com Hu Jintao e Wen Jiabao reforçou essa percepção.
O facto de este grupo se opor a uma democratização de tipo ocidental ajuda a explicar o grau de tolerância manifestado pelas autoridades. A Nova Esquerda defende uma democracia socialista com características chinesas, uma expressão vulgarmente usada pela doutrina oficial. Por exemplo, Kang Xiaoguang, professor na Universidade Renmim de Pequim argumenta que a China precisa de construir um estado cooperativo – “Hezuo zhuyi guojia” - para lidar com problemas relacionados com a corrupção e desigualdades de rendimentos e na distribuição de riqueza. Kang defende um sistema organizado em sectores funcionais da sociedade, que pudesse negar à burguesia a posição dominante e manter justiça social.

A atenção aos desvios esquerdistas

Não se deve contudo exagerar no peso que este grupo tem. Tudo depende de até onde vão as críticas e quais são os equilíbrios internos nas altas esferas do poder. Exemplo disso é o facto de em Julho de 2007 Wang Hui e Huang Ping terem sido afastados da direcção da revista Dushu. A justificação dada pela Joint Publisher Co, editora estatal, não convenceu muitos intelectuais e leitores da revista. A editora argumentou que a Dushu estava a ter uma circulação reduzida, quando estava a atingir 100 mil de tiragem, o melhor desempenho em 28 anos de história da publicação. Outra razão dada disse respeito à linguagem da Revista ser demasiado específica. Apesar de aparentemente ser mais “à esquerda” do que Deng ou Jiang, a liderança de Hu e Wen não terá esquecido o que disse Deng Xiaoping em 1993: “A China deve estar vigilante contra os desvios de direita, mas deve sobretudo ser cuidadosa face aos da esquerda”.

*Título do livro da economista He Qingliang, em que a autora critica severamente o modelo de desenvolvimento económico e social da China e o princípio enunciado por Jiang Zemin dos “Três Representantes”. A tradução do título do livro é algo parecido com “Nós ainda estamos a olhar para o céu estrelado”. O livro foi lançado em 2001 e prontamente proibido na República Popular da China.

China-União Europeia: De relação secundária a parceria estratégica

De relação secundária a parceria compreensiva estratégica

Aula aberta no Instituto Português do Oriente 8 de Maio de 2008

José Carlos Matias dos Santos

A História da relação entre a China e a Europa remonta às viagens de Marco Polo no século XIII, quando o comerciante veneziano seguiu pela Rota da Seda pela Ásia Central rumo ao país que chamou Cataio, zona correspondente ao Norte da China. Foi o comércio que fez regressar os europeus à China. Os portugueses atracaram no Sul da China, no século XVI movidos também por razões comerciais, tendo vindo a estabelecer-se em Macau a partir de meados do século XVI. A partir de então, a interacção entre europeus e chineses tomou contornos complexos, especialmente a partir do século XIX a partir das Guerras do Ópio e dos chamados “Tratados Desiguais”, assinados entre potências europeias e uma China da Dinastia Qing enfraquecida. Até aos anos 1970, a China relacionou-se com a Europa apenas tendo em conta cada estado nação. A partir de 1975, a República Popular da China (RPC) e a Comunidade Económica Europeia (CEE) estabeleceram relações diplomáticas, danço início a uma nova era ao tipo de relacionamento entre Pequim e a Europa Ocidental. A partir dessa altura passou a existir uma dupla dimensão nos laços sino-europeus: por um lado a relações bilaterais, estado a estado; por outro um relacionamento com a CEE, um organização que juntava na altura nove países da Europa Ocidental. Neste ensaio, concentramo-nos nesse relacionamento “suis generis” entre a RPC e a CEE, mais tarde designada de União Europeia (UE). Vamos, começar por fazer um breve retrospectiva da história dos laços entre os dois lados entre 1975 e 2005. Numa segunda fase, iremos analisar mais em detalhe algumas das questões que marcam a agenda do relacionamento entre Pequim e Bruxelas, antes de, para finalizar, traçarmos alguns dos desafios para futuro próximo. Tal como nos primeiros contactos, é o comércio o factor mais visíveld este relacionamento. Mas as relações sino.europeias evoluíram para muito mais que isso. São multifacetadas, complexas, complementares, competitivas e, sobretudo, interdependentes. Quando a Europa Ocidental era secundária para a RPC

Antes dos anos 1970, a forma como a RPC encarou a sua relação com e Europa Ocidental passou por várias fases. Num primeiro período, o Velho Continente desempenhou um papel marginal nas relações externas da recém-criada República Popular. A principal razão para que, nos primeiros anos da Revolução, Pequim não cuidasse dos seus laços com a Europa Ocidental prendia-se com a aliança a União Soviética: Pequim tinha muito pouca autonomia em termos de política externa, face à linha de Moscovo. No início da década de 1960, a RPC esboçou uma abordagem própria, fazendo aproximações diplomáticas à Europa Ocidental, com o objectivo de quebrar o isolamento diplomático resultante da perda de influência junto de vários países comunistas da Europa de Leste (com excepção da Roménia e Albânia) e da necessidade de encontrar parceiros económicos externos do “Primeiro Mundo”, após as consequências desastrosas do “Grande Salto em Frente”. Nesse momento, a França surgiu como a porta para uma nova relação de Pequim com os países europeus não-socialistas, ao estabelecer relações diplomáticas com a RPC, abandonando os laços com a República da China (Taiwan) de Chiang Kai-shek. Se na primeira metade dos anos 1960, a China começou a separar a estratégia diplomática face à Europa de questões ideológicas, a partir de 1966, com o eclodir da Revolução Cultural e a queda do presidente Liu Shaoqi e o afastamento de Deng Xiaoping, a diplomacia ficou refém, em grande medida, do radicalismo maoísta. Em 1972, a visita do presidente norte-americano Richard Nixon a Pequim o­nde se encontrou com Mao Zedong e com o primeiro-ministro Zhou Enlai, abriu uma nova página na política externa chinesa no período da Guerra Fria. O estabelecimento de relações diplomáticas com os EUA, surgiu numa altura em que a China se afastara da “revisionista” União Soviética, marcando o início da tese dos “três mundos”: o Primeiro Mundo, capitalista constituído pela Europa Ocidental e EUA, o Segundo Mundo com a União Soviética e os seus aliados, e o Terceiro Mundo, do qual fazia parte a China.

RPC e CEE reconhecem-se como actores cruciais no sistema internacional

Quando a CEE e a China estabeleceram relações diplomáticas em Setembro de 1975, internamente, o regime chinês estava a viver os últimos momentos da Revolução Cultural. Um ano depois faleceria Mao Zedong e o “Bando dos quatro” liderado por Jaing Qing (esposa de Mao) seria afastado do poder. Externamente, Pequim alinhava-se com Washington para combater a União Soviética. A CEE vivia os anos da “euroesclerose”, ou seja com taxas elevadas de desemprego, crescimento económico baixo e inflação. Karl Moller argumenta que ao estabelecerem laços diplomáticos, a China e a CEE reconheceram o papel que, no futuro, a outra parte iria desempenhar na economia e política internacional . Nos anos seguintes, as duas partes assinaram em acordo sobre o sector têxtil (em 1979) e, em 1980, a CEE decidiu incluir a China num sistema de preferências ao nível dos bens industriais e agrícolas. Harish Kapur (1990, pp. 149-152) salienta que nesta altura a integração económica em curso na CEE era vista por Pequim como um factor de contrapeso face à União Soviética. Em 1980, Deng Xiaoping salientava que a Europa era fundamental para a guerra e a paz no mundo . Esta estratégia foi estipulada no XII Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), em 1982, quando Deng Xiaoping fez aprovar o seu programa de reformas de abertura à economia de mercado, colocando um ponto final ao Maoismo. Ao nível da política externa, o “Pequeno Timoneiro” colocou ênfase no binómio Paz e Desenvolvimento, como pedras de toque de uma acção diplomática que doravante iria valorizar o pragmatismo e não aspectos ideológicos. Na década de 1980, apesar da prevalência do bipolarismo militar, o gelo da Guerra Fria começou a derreter, fazendo com que Pequim se sentisse menos ameaçada por Moscovo. Alguns anos mais tarde, com a crise e desintegração da União Soviética, a China deixou de olhar para a CEE como uma barreira contra o “imperialismo soviético”. Com a implosão do Bloco de Leste, Pequim começou a encarar a UE como um novo pólo num mundo unipolar – sob a hegemonia norte-americana – que iria transformar-se gradualmente numa ordem internacional multipolar.

Tiananmen 1989: Relações quase congeladas

O fim do Bloco de Leste e a o­nda de democratização desses países que durante quarenta anos viveram sob o jugo de ditaduras socialistas pró-Moscovo foi entendido pela China como uma ameaça à manutenção do regime em Pequim. Entre 1989 e 1991 as relações entre a China e a CEE passaram por momentos de crise, na sequência da repressão sobre os estudantes na Praça de Tiananmen, a 4 de Junho de 1989. A Comissão Europeia (CE) desaprovou de forma veemente a repressão e no dia 27 de Junho os líderes europeus aprovaram sanções à China e Julho de 1989, a CEE juntamente com os Estados Unidos e o Canadá suspenderam as vistas ministeriais de alto nível, e decretaram um embargo à venda de armas e tecnologia militar à RPC. A partir de 1993 as relações políticas e diplomáticas amenizaram. As visitas de alto nível regressaram, ao mesmo tempo que em Maastricht, os líderes europeus, assinavam o Tratado da União Europeia (UE), um documento que dava um passo crucial no processo de integração económica e política do Velho Continente. Com o Tratado de Maastricht o projecto europeu ganhou um novo ímpeto com um novo modelo de três pilares: a Comunidade Europeia, a Cooperação Policial e Judicial em Assuntos Penais e a Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Com este Tratado a UE ampliou a sua projecção internacional, uma situação que não passou despercebida em Pequim.

Uma nova era nas relações sino-europeias

Em 1994, Jiang Zemin dava a conhecer os “Quatro Princípios para o Desenvolvimento das relações entre a China e a Europa Ocidental”, um documento em que eram lançadas as pontes para um entendimento sino-europeu no final do século XX e início do século XXI. Para Pequim as pedras de toque deviam ser o respeito mútuo, a busca de uma base comum de diálogo, esbater as diferenças e a resolução de conflitos através de consultas e cooperação. Um ano antes, a Comissão Europeia lançava um Documento estratégico - “Towards a New Asia Strategy” em que Bruxelas dedicou especial atenção à china. Micahel Yahuda (2008, p. 27) defende que o objectivo da UE era nessa altura sobretudo aprofundar a participação da China no sistema internacional e promover a emergência da RPC como uma potência responsável que seguisse as normas da comunidade internacional. Em 1995, no documento estratégico “A Long Term Policy for the Relations between China and Europe” , Bruxelas reconhece a necessidade de ter uma relação estável e sólida coma China, sublinhando que a China é importante para a UE em várias áreas, nomeadamente ao nível de questões de segurança regional e global, protecção ambiental, direitos humanos, luta contra a SIDA, desenvolvimento científico e tecnológico, sociedade da informação e estabilidade económica global. Na mesma linha, em 1998, a CE lançou um novo documento intitulado “"Building a Comprehensive Partnership with China", em que a parceria com a China era elevada a um novo patamar. Bruxelas apoia nesta documento estratégico que a China seja um parte activa no sistema internacional e que consiga fazer uma transição bem-sucedida para uma sociedade aberta, com um “Estado de Direito” forte em que os direitos humanos sejam respeitados. Três anos depois a China aderia à Organização Mundial de Comércio, num processo em que a UE teve um papel importante.

A “lua de mel” entre Bruxelas e Pequim

Através destes documentos a UE lançava as bases para uma estratégia coerente face à RPC, que foi consubstanciada num primeiro documento estratégico que delineou as bases para o relacionamento e cooperação entre as duas partes entre 2002 e 2006. Entretanto, a CE deu a conhecer um novo “paper”: “A maturing partnership - shared interests and challenges in EU-China relations”. A evolução semântica de “long-term” para “compreensive” e finalmente “maturing partnership”, ilustra a forma como a CE encara a relação com Pequim. Para trás estava o ambiente de desconforto face à China, resultante da repressão sobre os estudantes na Praça de Tiananmen e quais quer questões coloniais com países europeus, após a entrega de Hong Kong em 1997 e de Macau em 1999. Após vários documentos estratégicos por parte dos europeus, as autoridades chinesas deram a conhecer, em 2003, o seu primeiro texto oficial sobre as relações com a UE. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC salienta neste documento que não há nenhum conflito de interesses fundamental entre a China e a União Europeia. Pelo contrário; Pequim enumera uma série de aspectos de interesse comum desde o combate ao terrorismo, passando pelo multilateralismo, questões ambientais, combate à pobreza, entre outros assuntos .Tendo em conta a cooperação crescente entre as duas partes e os laços económicos e comerciais crescentes, a China argumentava que não fazia qualquer sentido a manutenção do embargo à venda de armas por parte da UE. A diplomacia chinesa acreditava que a UE, querendo afirmar-se em de defesa e política externa face aos EUA, iria colocar um ponto final ao que Pequim classifica de “relíquia da Guerra Fria”. O aprofundamento do relacionamento ao nível de alta tecnologia e as declarações de alguns responsáveis europeus eram sinais lidos pela liderança chinesa como indicativos que o fim do embargo estava próximo. Em 2003, vários países europeus opuseram-se à invasão norte-americana do Iraque ao mesmo tempo que proliferavam tomadas de posição contra o unilateralismo norte-americano. O então presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, dizia que nenhum país devia agir independentemente da Comunidade Internacional, nem mesmo os EUA, ao mesmo tempo que criticava a política de Washington de “dividir a Europa para reinar” . Em Novembro de 2003, um ano conturbado nas relações Transatlânticas, a China e a União Europeia assinaram um acordo com vista à participação da RPC no desenvolvimento do Galileo – Sistema Europeu de Navegação e Posicionamento por Satélite, um projecto desenhado para ser uma alternativa ao norte-americano GPS. Os anos de 2003 e 2004 constituíram o momento alto no entendimento sino-europeu, ao ponto de alguns autores, como o académico norte-americano David Shambaugh (2004), falarem de um “Eixo Emergente” no sistema internacional. O mesmo autor classificava este momento como “lua de mel”. As relações comerciais prosperavam ao ponto da UE se tornar no primeiro parceiro comercial da china e da RPC ser o segundo parceiro em trocas comerciais da Europa, logo a seguir aos EUA. Em termos diplomáticos, em 2003 foi proclamada a “parceria estratégica compreensiva” entre Pequim e Bruxelas. Num discurso em Bruxelas, em Maio de 2004, o primeiro-ministro Wen Jiabao explicou o que entendia por “parceria compreensiva estratégica”:

“Por compreensiva, entendemos que significa que a cooperação dever ser multidimensional e abordar vários sectores. Engloba aspectos económicos, científicos, tecnológicos, políticos e culturais, incluindo simultaneamente níveis bilaterais e multilaterais, sendo conduzida pelos governos e por grupos não-governamentais. Por estratégica entendemos que deve ser encarada no longo prazo e deve ser estável, tendo em conta as relações UE-China como um todo. Transcende as diferenças de ideologia e de sistemas sociais e não está sujeita a eventos individuais que ocorram de tempo a tempo. Por parceria entendemos que a cooperação deve ter uma base de relacionamento igual, com benefícios mútuos, num jogo de soma positiva”

A mudança de tom

Mas, a seguir à fase de deslumbramento vieram os primeiros obstáculos neste novo relacionamento. A UE, que entretanto já era constituída não pró 15, mas por 27 estados-membros com a entrava de uma assentada apenas, de dez países da Europa de Leste, não chegou a acordo sobre o fim do embargo à venda de armas à China. As posições reticentes de alguns países do norte da Europa e dos novos estados-membros, a par da posição do Parlamento Europeu fizeram com que tivesse sido impossível dar esse passo tão ansiado pela RPC. A linguagem agressiva de Pequim face a Taiwan, com a aprovação da Lei Anti-Secessão pela Assembleia Popular Nacional em 2005, e as preocupações face à situação dos direitos humanos na China também foram factores que impediram que houvesse um acordo. No mesmo ano, com o fim da vigência do Acordo Multi-fibras, os têxteis chineses passaram a ter a porta do mercado europeu escancarada, o que fez com que as exportações da RPC subissem vertiginosamente. O alarme soou nas capitais europeias, ao mesmo tempo que a china era constantemente retratada nos media como a grande “ameaça económica” dos produtores europeus. Em Setembro, Bruxelas e Pequim chegaram a acordo sobre o tipo de medidas de salvaguarda que a UE tomou face à súbita “grande invasão” de têxteis chineses. Contudo, as questões comerciais continuaram a “ensombrar” as cimeiras, uma vez que o défice comercial europeu face à china aumenta a olhos vistos e de uma forma aparentemente imparável. Nos últimos encontros, os líderes europeus fizeram questão de deixar claro que o défice coloca problemas ao relacionamento entre as duas partes, pedindo de forma insistente uma valorização do yuan. A mudança de tom começou a ser mais visível em Outubro2006 quando a CE emitiu o documento “China and Europe: Closer Partnership, Growing Responsabilities”, em que Bruxelas pediu à China que abra os mercados e assegure uma competição justa, reduza e elimine barreiras comerciais, proteja efectivamente os direitos de propriedade intelectual, desenvolva tecnologias limpas, proteja os direitos humanos, dialogue com a UE sobre a cooperação com África, melhore a transparência sobre as despesas militares, entre outros aspectos. Em Pequim, a reacção a este documento foi de surpresa pelo tom e pelos pedidos – entendidos quase como exigências – uma abordagem mais típica dos EUA do que a que tinha sido habitual pela UE. Em todo o caso, as duas partes prosseguiram as negociações rumo a um novo Acordo de Parceria e Cooperação que sirva de base para um relacionamento que definitivamente passou de uma fase de “lua de mel” em 2003-2005 para um casamento complexo, desde 2006.

Um casamento complexo

Em Setembro de 2004, o académico norte-americano David Shambaugh escrevia, na revista “Current History”, que o relacionamento entre a China e a União Europeia estava a evoluir para um “eixo emergente que, com o tempo, será uma fonte de estabilidade num mundo volátil”. Nessa altura as visitas de alto nível e as cimeiras eram preenchidas por declarações de reforço da cooperação de uma parceria estratégica vista pelos dois lados como um jogo de soma positiva. De forma mais prosaica, o então Presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, recusava o que alguns críticos chamavam de “trade love affair”, garantindo que “se não estamos perante um casamento, trata-se pelo menos de um noivado muito sério”. Foi também nessa altura que os estados membros da UE estiveram perto de levantar o embargo à venda de armas que prevalece desde os acontecimentos de Tiananmen, em 1989. Mas o discurso e a abordagem da UE mudou. Em Novembro de 2007, o Comissário europeu do Comércio, Peter Mandelson, afirmou num fórum empresarial, à margem da cimeira China-UE, em Pequim, que todos os anos chega à Europa uma “onda gigante” de produtos contrafeitos e que “a paciência dos europeus face a esta situação está a ser testada”, sublinhando que “é difícil prever qual será o limite”. No mesmo evento, num fórum sobre direitos de propriedade intelectual, a então vice-primeira ministra Wu Yi mostrou estar muito desagradada com as afirmações de Mandelson. Wu Guangzhong, vice-director da Administração Geral para a Supervisão da Qualidade, afirmou que “esta não foi a melhor ocasião para falar desta maneira” e acusou Mandelson de estar a ser “injusto” face aos progressos registados na China recentemente no combate à pirataria no esforço pela melhoria da segurança e qualidade dos produtos.Comentando o sucedido, Zhang Xiaojin, do Centro de Estudos europeus da Universidade de Renmin, dizia, na edição de 27 de Novembro de 2007 do South China Morning Post que “a lua-de-mel nas relações sino-europeias acabou. A China e a UE são competidores estratégicos e é normal que os pontos de vista sejam expressos de uma maneira mais cortante. Mas a China não está ainda preparada, Pode ficar chocada com este tipo de linguagem da UE”. Embora estes episódios por si não constituam um sinal de crise, certo é que a UE de Barroso, Merkel (que recebeu o Dalai Lama) e Sarkozy (que ameaçou boicotar os Jogos Olímpicos caso a China não dialogue com o Dalai Lama) é diferente da de Prodi, Schroeder e Chirac. O­nde os anteriores lideres viam sobretudo uma relação económica vantajosa que devia abrir caminho para uma aproximação política cada vez mais intensa como forma também de contrabalançar a hegemonia norte-americana e, simultaneamente, afirmar a posição autónoma da política externa europeia, os actuais - nitidamente mais “transatlanticistas” – olham para a China cada vez mais como um competidor que é preciso pressionar para que os interesses dos 27 não sejam prejudicados com a emergência chinesa. Naturalmente que uma abordagem às relações sino-europeias implica o cruzamento de muitos outros factores. Todavia, parece claro que – ainda que estruturalmente não haja alterações de fundo – a forma como os líderes europeus lidam com a China está a sofrer algumas alterações. Utilizando uma linguagem cara a Joseph S. Nye e Robert Kehonane, o relacionamento caracteriza-se cada vez mais por uma “interdependência complexa”, com interesses comuns e contraditórios.

Ganhos absolutos e perdas relativas

Além disso, é impossível olhar para este cenário sem ter em conta os EUA, É que ao longo de décadas as relações China-Europa sempre foram subsidiárias da relação bilateral mais importante neste início de século: Pequim-Washington. Os norte-americanos sempre viram com maus olhos as tentativas de aliança entre a UE e a China em áreas sensíveis como a defesa ou tecnologias sensíveis. Foi o caso do projecto europeu de navegação por satélite Galileo, que esteve sob o fogo de Washington não só por ser um futuro competidor do GPS, mas também porque a China entrou no empreendimento como principal parceiro externo. Outro exemplo claro diz respeito ao embargo à venda de armas. Em 2004 e 2005 os EUA e os seus aliados mais próximos na UE conseguiram que não houvesse consenso para o fim da proibição da venda de armas à China, quando o então chefe de estado francês Jacques Chirac e Schroeder eram dinamizadores da iniciativa (com Portugal a subscrever também essa posição). A argumentação chinesa baseava-se em duas constatações primordiais: por um lado, a China é “apenas” o segundo maior parceiro comercial da UE, por outro, que sentido faz colocar um país com o qual Bruxelas tem uma parceria estratégica, investimentos e inúmeros projectos de cooperação ao nível do Zimbabué.Os que depositam esperanças nas virtudes do “institucionalismo” argumentam que estes problemas vão ser resolvidos através do diálogo, como aconteceu em 2005 quando Mandelson e o ministro do Comércio Bo Xilai resolveram a questão da entrada dos têxteis chineses no espaço europeu. No futuro próximo, é provável que os mecanismos de diálogo formal abundantes entre Bruxelas e Pequim possam ser suficientes par ultrapassar estes obstáculos. Contudo, à medida que avança vertiginosamente o processo de industrialização e a modernização da China, é natural que o “aparelho produtivo” chinês seja cada vez mais competitivo também nas indústrias de capital intensivo – o que está a acontecer há vários anos – criando bens de consumo com mais-valias que podem ser quase imbatíveis na economia internacional. Em áreas estratégicas, como a aeronáutica e a tecnologia de navegação e posicionamento, a China já anunciou o lançamento de um competidor da Airbus e da Boeing e de um sistema de navegação por satélite – Beidou II – que poderá constituir uma alternativa ao GPS e ao Galileo. Em suma, no futuro tudo irá depender das tensões entre a competição e a complementaridade das duas economias, da coesão da política externa comum da UE, da outra parte da equação nesta relação – os EUA – e da forma como os agentes económicos e políticos encararem o que é cada vez evidente: a emergência da China vai continuar a gerar uma perda de posição relativa (embora resulte em grande medida num jogo de soma positiva) da UE. O que vai prevalecer? Os ganhos absolutos ou as perdas relativas?

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