De relação secundária a parceria compreensiva estratégica
Aula aberta no Instituto Português do Oriente 8 de Maio de 2008
José Carlos Matias dos Santos
A História da relação entre a China e a Europa remonta às viagens de Marco Polo no século XIII, quando o comerciante veneziano seguiu pela Rota da Seda pela Ásia Central rumo ao país que chamou Cataio, zona correspondente ao Norte da China. Foi o comércio que fez regressar os europeus à China. Os portugueses atracaram no Sul da China, no século XVI movidos também por razões comerciais, tendo vindo a estabelecer-se em Macau a partir de meados do século XVI. A partir de então, a interacção entre europeus e chineses tomou contornos complexos, especialmente a partir do século XIX a partir das Guerras do Ópio e dos chamados “Tratados Desiguais”, assinados entre potências europeias e uma China da Dinastia Qing enfraquecida. Até aos anos 1970, a China relacionou-se com a Europa apenas tendo em conta cada estado nação. A partir de 1975, a República Popular da China (RPC) e a Comunidade Económica Europeia (CEE) estabeleceram relações diplomáticas, danço início a uma nova era ao tipo de relacionamento entre Pequim e a Europa Ocidental. A partir dessa altura passou a existir uma dupla dimensão nos laços sino-europeus: por um lado a relações bilaterais, estado a estado; por outro um relacionamento com a CEE, um organização que juntava na altura nove países da Europa Ocidental. Neste ensaio, concentramo-nos nesse relacionamento “suis generis” entre a RPC e a CEE, mais tarde designada de União Europeia (UE). Vamos, começar por fazer um breve retrospectiva da história dos laços entre os dois lados entre 1975 e 2005. Numa segunda fase, iremos analisar mais em detalhe algumas das questões que marcam a agenda do relacionamento entre Pequim e Bruxelas, antes de, para finalizar, traçarmos alguns dos desafios para futuro próximo. Tal como nos primeiros contactos, é o comércio o factor mais visíveld este relacionamento. Mas as relações sino.europeias evoluíram para muito mais que isso. São multifacetadas, complexas, complementares, competitivas e, sobretudo, interdependentes. Quando a Europa Ocidental era secundária para a RPC
Antes dos anos 1970, a forma como a RPC encarou a sua relação com e Europa Ocidental passou por várias fases. Num primeiro período, o Velho Continente desempenhou um papel marginal nas relações externas da recém-criada República Popular. A principal razão para que, nos primeiros anos da Revolução, Pequim não cuidasse dos seus laços com a Europa Ocidental prendia-se com a aliança a União Soviética: Pequim tinha muito pouca autonomia em termos de política externa, face à linha de Moscovo. No início da década de 1960, a RPC esboçou uma abordagem própria, fazendo aproximações diplomáticas à Europa Ocidental, com o objectivo de quebrar o isolamento diplomático resultante da perda de influência junto de vários países comunistas da Europa de Leste (com excepção da Roménia e Albânia) e da necessidade de encontrar parceiros económicos externos do “Primeiro Mundo”, após as consequências desastrosas do “Grande Salto em Frente”. Nesse momento, a França surgiu como a porta para uma nova relação de Pequim com os países europeus não-socialistas, ao estabelecer relações diplomáticas com a RPC, abandonando os laços com a República da China (Taiwan) de Chiang Kai-shek. Se na primeira metade dos anos 1960, a China começou a separar a estratégia diplomática face à Europa de questões ideológicas, a partir de 1966, com o eclodir da Revolução Cultural e a queda do presidente Liu Shaoqi e o afastamento de Deng Xiaoping, a diplomacia ficou refém, em grande medida, do radicalismo maoísta. Em 1972, a visita do presidente norte-americano Richard Nixon a Pequim onde se encontrou com Mao Zedong e com o primeiro-ministro Zhou Enlai, abriu uma nova página na política externa chinesa no período da Guerra Fria. O estabelecimento de relações diplomáticas com os EUA, surgiu numa altura em que a China se afastara da “revisionista” União Soviética, marcando o início da tese dos “três mundos”: o Primeiro Mundo, capitalista constituído pela Europa Ocidental e EUA, o Segundo Mundo com a União Soviética e os seus aliados, e o Terceiro Mundo, do qual fazia parte a China.
RPC e CEE reconhecem-se como actores cruciais no sistema internacional
Quando a CEE e a China estabeleceram relações diplomáticas em Setembro de 1975, internamente, o regime chinês estava a viver os últimos momentos da Revolução Cultural. Um ano depois faleceria Mao Zedong e o “Bando dos quatro” liderado por Jaing Qing (esposa de Mao) seria afastado do poder. Externamente, Pequim alinhava-se com Washington para combater a União Soviética. A CEE vivia os anos da “euroesclerose”, ou seja com taxas elevadas de desemprego, crescimento económico baixo e inflação. Karl Moller argumenta que ao estabelecerem laços diplomáticos, a China e a CEE reconheceram o papel que, no futuro, a outra parte iria desempenhar na economia e política internacional . Nos anos seguintes, as duas partes assinaram em acordo sobre o sector têxtil (em 1979) e, em 1980, a CEE decidiu incluir a China num sistema de preferências ao nível dos bens industriais e agrícolas. Harish Kapur (1990, pp. 149-152) salienta que nesta altura a integração económica em curso na CEE era vista por Pequim como um factor de contrapeso face à União Soviética. Em 1980, Deng Xiaoping salientava que a Europa era fundamental para a guerra e a paz no mundo . Esta estratégia foi estipulada no XII Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC), em 1982, quando Deng Xiaoping fez aprovar o seu programa de reformas de abertura à economia de mercado, colocando um ponto final ao Maoismo. Ao nível da política externa, o “Pequeno Timoneiro” colocou ênfase no binómio Paz e Desenvolvimento, como pedras de toque de uma acção diplomática que doravante iria valorizar o pragmatismo e não aspectos ideológicos. Na década de 1980, apesar da prevalência do bipolarismo militar, o gelo da Guerra Fria começou a derreter, fazendo com que Pequim se sentisse menos ameaçada por Moscovo. Alguns anos mais tarde, com a crise e desintegração da União Soviética, a China deixou de olhar para a CEE como uma barreira contra o “imperialismo soviético”. Com a implosão do Bloco de Leste, Pequim começou a encarar a UE como um novo pólo num mundo unipolar – sob a hegemonia norte-americana – que iria transformar-se gradualmente numa ordem internacional multipolar.
Tiananmen 1989: Relações quase congeladas
O fim do Bloco de Leste e a onda de democratização desses países que durante quarenta anos viveram sob o jugo de ditaduras socialistas pró-Moscovo foi entendido pela China como uma ameaça à manutenção do regime em Pequim. Entre 1989 e 1991 as relações entre a China e a CEE passaram por momentos de crise, na sequência da repressão sobre os estudantes na Praça de Tiananmen, a 4 de Junho de 1989. A Comissão Europeia (CE) desaprovou de forma veemente a repressão e no dia 27 de Junho os líderes europeus aprovaram sanções à China e Julho de 1989, a CEE juntamente com os Estados Unidos e o Canadá suspenderam as vistas ministeriais de alto nível, e decretaram um embargo à venda de armas e tecnologia militar à RPC. A partir de 1993 as relações políticas e diplomáticas amenizaram. As visitas de alto nível regressaram, ao mesmo tempo que em Maastricht, os líderes europeus, assinavam o Tratado da União Europeia (UE), um documento que dava um passo crucial no processo de integração económica e política do Velho Continente. Com o Tratado de Maastricht o projecto europeu ganhou um novo ímpeto com um novo modelo de três pilares: a Comunidade Europeia, a Cooperação Policial e Judicial em Assuntos Penais e a Política Externa e de Segurança Comum (PESC). Com este Tratado a UE ampliou a sua projecção internacional, uma situação que não passou despercebida em Pequim.
Uma nova era nas relações sino-europeias
Em 1994, Jiang Zemin dava a conhecer os “Quatro Princípios para o Desenvolvimento das relações entre a China e a Europa Ocidental”, um documento em que eram lançadas as pontes para um entendimento sino-europeu no final do século XX e início do século XXI. Para Pequim as pedras de toque deviam ser o respeito mútuo, a busca de uma base comum de diálogo, esbater as diferenças e a resolução de conflitos através de consultas e cooperação. Um ano antes, a Comissão Europeia lançava um Documento estratégico - “Towards a New Asia Strategy” em que Bruxelas dedicou especial atenção à china. Micahel Yahuda (2008, p. 27) defende que o objectivo da UE era nessa altura sobretudo aprofundar a participação da China no sistema internacional e promover a emergência da RPC como uma potência responsável que seguisse as normas da comunidade internacional. Em 1995, no documento estratégico “A Long Term Policy for the Relations between China and Europe” , Bruxelas reconhece a necessidade de ter uma relação estável e sólida coma China, sublinhando que a China é importante para a UE em várias áreas, nomeadamente ao nível de questões de segurança regional e global, protecção ambiental, direitos humanos, luta contra a SIDA, desenvolvimento científico e tecnológico, sociedade da informação e estabilidade económica global. Na mesma linha, em 1998, a CE lançou um novo documento intitulado “"Building a Comprehensive Partnership with China", em que a parceria com a China era elevada a um novo patamar. Bruxelas apoia nesta documento estratégico que a China seja um parte activa no sistema internacional e que consiga fazer uma transição bem-sucedida para uma sociedade aberta, com um “Estado de Direito” forte em que os direitos humanos sejam respeitados. Três anos depois a China aderia à Organização Mundial de Comércio, num processo em que a UE teve um papel importante.
A “lua de mel” entre Bruxelas e Pequim
Através destes documentos a UE lançava as bases para uma estratégia coerente face à RPC, que foi consubstanciada num primeiro documento estratégico que delineou as bases para o relacionamento e cooperação entre as duas partes entre 2002 e 2006. Entretanto, a CE deu a conhecer um novo “paper”: “A maturing partnership - shared interests and challenges in EU-China relations”. A evolução semântica de “long-term” para “compreensive” e finalmente “maturing partnership”, ilustra a forma como a CE encara a relação com Pequim. Para trás estava o ambiente de desconforto face à China, resultante da repressão sobre os estudantes na Praça de Tiananmen e quais quer questões coloniais com países europeus, após a entrega de Hong Kong em 1997 e de Macau em 1999. Após vários documentos estratégicos por parte dos europeus, as autoridades chinesas deram a conhecer, em 2003, o seu primeiro texto oficial sobre as relações com a UE. O Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC salienta neste documento que não há nenhum conflito de interesses fundamental entre a China e a União Europeia. Pelo contrário; Pequim enumera uma série de aspectos de interesse comum desde o combate ao terrorismo, passando pelo multilateralismo, questões ambientais, combate à pobreza, entre outros assuntos .Tendo em conta a cooperação crescente entre as duas partes e os laços económicos e comerciais crescentes, a China argumentava que não fazia qualquer sentido a manutenção do embargo à venda de armas por parte da UE. A diplomacia chinesa acreditava que a UE, querendo afirmar-se em de defesa e política externa face aos EUA, iria colocar um ponto final ao que Pequim classifica de “relíquia da Guerra Fria”. O aprofundamento do relacionamento ao nível de alta tecnologia e as declarações de alguns responsáveis europeus eram sinais lidos pela liderança chinesa como indicativos que o fim do embargo estava próximo. Em 2003, vários países europeus opuseram-se à invasão norte-americana do Iraque ao mesmo tempo que proliferavam tomadas de posição contra o unilateralismo norte-americano. O então presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, dizia que nenhum país devia agir independentemente da Comunidade Internacional, nem mesmo os EUA, ao mesmo tempo que criticava a política de Washington de “dividir a Europa para reinar” . Em Novembro de 2003, um ano conturbado nas relações Transatlânticas, a China e a União Europeia assinaram um acordo com vista à participação da RPC no desenvolvimento do Galileo – Sistema Europeu de Navegação e Posicionamento por Satélite, um projecto desenhado para ser uma alternativa ao norte-americano GPS. Os anos de 2003 e 2004 constituíram o momento alto no entendimento sino-europeu, ao ponto de alguns autores, como o académico norte-americano David Shambaugh (2004), falarem de um “Eixo Emergente” no sistema internacional. O mesmo autor classificava este momento como “lua de mel”. As relações comerciais prosperavam ao ponto da UE se tornar no primeiro parceiro comercial da china e da RPC ser o segundo parceiro em trocas comerciais da Europa, logo a seguir aos EUA. Em termos diplomáticos, em 2003 foi proclamada a “parceria estratégica compreensiva” entre Pequim e Bruxelas. Num discurso em Bruxelas, em Maio de 2004, o primeiro-ministro Wen Jiabao explicou o que entendia por “parceria compreensiva estratégica”:
“Por compreensiva, entendemos que significa que a cooperação dever ser multidimensional e abordar vários sectores. Engloba aspectos económicos, científicos, tecnológicos, políticos e culturais, incluindo simultaneamente níveis bilaterais e multilaterais, sendo conduzida pelos governos e por grupos não-governamentais. Por estratégica entendemos que deve ser encarada no longo prazo e deve ser estável, tendo em conta as relações UE-China como um todo. Transcende as diferenças de ideologia e de sistemas sociais e não está sujeita a eventos individuais que ocorram de tempo a tempo. Por parceria entendemos que a cooperação deve ter uma base de relacionamento igual, com benefícios mútuos, num jogo de soma positiva”
A mudança de tom
Mas, a seguir à fase de deslumbramento vieram os primeiros obstáculos neste novo relacionamento. A UE, que entretanto já era constituída não pró 15, mas por 27 estados-membros com a entrava de uma assentada apenas, de dez países da Europa de Leste, não chegou a acordo sobre o fim do embargo à venda de armas à China. As posições reticentes de alguns países do norte da Europa e dos novos estados-membros, a par da posição do Parlamento Europeu fizeram com que tivesse sido impossível dar esse passo tão ansiado pela RPC. A linguagem agressiva de Pequim face a Taiwan, com a aprovação da Lei Anti-Secessão pela Assembleia Popular Nacional em 2005, e as preocupações face à situação dos direitos humanos na China também foram factores que impediram que houvesse um acordo. No mesmo ano, com o fim da vigência do Acordo Multi-fibras, os têxteis chineses passaram a ter a porta do mercado europeu escancarada, o que fez com que as exportações da RPC subissem vertiginosamente. O alarme soou nas capitais europeias, ao mesmo tempo que a china era constantemente retratada nos media como a grande “ameaça económica” dos produtores europeus. Em Setembro, Bruxelas e Pequim chegaram a acordo sobre o tipo de medidas de salvaguarda que a UE tomou face à súbita “grande invasão” de têxteis chineses. Contudo, as questões comerciais continuaram a “ensombrar” as cimeiras, uma vez que o défice comercial europeu face à china aumenta a olhos vistos e de uma forma aparentemente imparável. Nos últimos encontros, os líderes europeus fizeram questão de deixar claro que o défice coloca problemas ao relacionamento entre as duas partes, pedindo de forma insistente uma valorização do yuan. A mudança de tom começou a ser mais visível em Outubro2006 quando a CE emitiu o documento “China and Europe: Closer Partnership, Growing Responsabilities”, em que Bruxelas pediu à China que abra os mercados e assegure uma competição justa, reduza e elimine barreiras comerciais, proteja efectivamente os direitos de propriedade intelectual, desenvolva tecnologias limpas, proteja os direitos humanos, dialogue com a UE sobre a cooperação com África, melhore a transparência sobre as despesas militares, entre outros aspectos. Em Pequim, a reacção a este documento foi de surpresa pelo tom e pelos pedidos – entendidos quase como exigências – uma abordagem mais típica dos EUA do que a que tinha sido habitual pela UE. Em todo o caso, as duas partes prosseguiram as negociações rumo a um novo Acordo de Parceria e Cooperação que sirva de base para um relacionamento que definitivamente passou de uma fase de “lua de mel” em 2003-2005 para um casamento complexo, desde 2006.
Um casamento complexo
Em Setembro de 2004, o académico norte-americano David Shambaugh escrevia, na revista “Current History”, que o relacionamento entre a China e a União Europeia estava a evoluir para um “eixo emergente que, com o tempo, será uma fonte de estabilidade num mundo volátil”. Nessa altura as visitas de alto nível e as cimeiras eram preenchidas por declarações de reforço da cooperação de uma parceria estratégica vista pelos dois lados como um jogo de soma positiva. De forma mais prosaica, o então Presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, recusava o que alguns críticos chamavam de “trade love affair”, garantindo que “se não estamos perante um casamento, trata-se pelo menos de um noivado muito sério”. Foi também nessa altura que os estados membros da UE estiveram perto de levantar o embargo à venda de armas que prevalece desde os acontecimentos de Tiananmen, em 1989. Mas o discurso e a abordagem da UE mudou. Em Novembro de 2007, o Comissário europeu do Comércio, Peter Mandelson, afirmou num fórum empresarial, à margem da cimeira China-UE, em Pequim, que todos os anos chega à Europa uma “onda gigante” de produtos contrafeitos e que “a paciência dos europeus face a esta situação está a ser testada”, sublinhando que “é difícil prever qual será o limite”. No mesmo evento, num fórum sobre direitos de propriedade intelectual, a então vice-primeira ministra Wu Yi mostrou estar muito desagradada com as afirmações de Mandelson. Wu Guangzhong, vice-director da Administração Geral para a Supervisão da Qualidade, afirmou que “esta não foi a melhor ocasião para falar desta maneira” e acusou Mandelson de estar a ser “injusto” face aos progressos registados na China recentemente no combate à pirataria no esforço pela melhoria da segurança e qualidade dos produtos.Comentando o sucedido, Zhang Xiaojin, do Centro de Estudos europeus da Universidade de Renmin, dizia, na edição de 27 de Novembro de 2007 do South China Morning Post que “a lua-de-mel nas relações sino-europeias acabou. A China e a UE são competidores estratégicos e é normal que os pontos de vista sejam expressos de uma maneira mais cortante. Mas a China não está ainda preparada, Pode ficar chocada com este tipo de linguagem da UE”. Embora estes episódios por si não constituam um sinal de crise, certo é que a UE de Barroso, Merkel (que recebeu o Dalai Lama) e Sarkozy (que ameaçou boicotar os Jogos Olímpicos caso a China não dialogue com o Dalai Lama) é diferente da de Prodi, Schroeder e Chirac. Onde os anteriores lideres viam sobretudo uma relação económica vantajosa que devia abrir caminho para uma aproximação política cada vez mais intensa como forma também de contrabalançar a hegemonia norte-americana e, simultaneamente, afirmar a posição autónoma da política externa europeia, os actuais - nitidamente mais “transatlanticistas” – olham para a China cada vez mais como um competidor que é preciso pressionar para que os interesses dos 27 não sejam prejudicados com a emergência chinesa. Naturalmente que uma abordagem às relações sino-europeias implica o cruzamento de muitos outros factores. Todavia, parece claro que – ainda que estruturalmente não haja alterações de fundo – a forma como os líderes europeus lidam com a China está a sofrer algumas alterações. Utilizando uma linguagem cara a Joseph S. Nye e Robert Kehonane, o relacionamento caracteriza-se cada vez mais por uma “interdependência complexa”, com interesses comuns e contraditórios.
Ganhos absolutos e perdas relativas
Além disso, é impossível olhar para este cenário sem ter em conta os EUA, É que ao longo de décadas as relações China-Europa sempre foram subsidiárias da relação bilateral mais importante neste início de século: Pequim-Washington. Os norte-americanos sempre viram com maus olhos as tentativas de aliança entre a UE e a China em áreas sensíveis como a defesa ou tecnologias sensíveis. Foi o caso do projecto europeu de navegação por satélite Galileo, que esteve sob o fogo de Washington não só por ser um futuro competidor do GPS, mas também porque a China entrou no empreendimento como principal parceiro externo. Outro exemplo claro diz respeito ao embargo à venda de armas. Em 2004 e 2005 os EUA e os seus aliados mais próximos na UE conseguiram que não houvesse consenso para o fim da proibição da venda de armas à China, quando o então chefe de estado francês Jacques Chirac e Schroeder eram dinamizadores da iniciativa (com Portugal a subscrever também essa posição). A argumentação chinesa baseava-se em duas constatações primordiais: por um lado, a China é “apenas” o segundo maior parceiro comercial da UE, por outro, que sentido faz colocar um país com o qual Bruxelas tem uma parceria estratégica, investimentos e inúmeros projectos de cooperação ao nível do Zimbabué.Os que depositam esperanças nas virtudes do “institucionalismo” argumentam que estes problemas vão ser resolvidos através do diálogo, como aconteceu em 2005 quando Mandelson e o ministro do Comércio Bo Xilai resolveram a questão da entrada dos têxteis chineses no espaço europeu. No futuro próximo, é provável que os mecanismos de diálogo formal abundantes entre Bruxelas e Pequim possam ser suficientes par ultrapassar estes obstáculos. Contudo, à medida que avança vertiginosamente o processo de industrialização e a modernização da China, é natural que o “aparelho produtivo” chinês seja cada vez mais competitivo também nas indústrias de capital intensivo – o que está a acontecer há vários anos – criando bens de consumo com mais-valias que podem ser quase imbatíveis na economia internacional. Em áreas estratégicas, como a aeronáutica e a tecnologia de navegação e posicionamento, a China já anunciou o lançamento de um competidor da Airbus e da Boeing e de um sistema de navegação por satélite – Beidou II – que poderá constituir uma alternativa ao GPS e ao Galileo. Em suma, no futuro tudo irá depender das tensões entre a competição e a complementaridade das duas economias, da coesão da política externa comum da UE, da outra parte da equação nesta relação – os EUA – e da forma como os agentes económicos e políticos encararem o que é cada vez evidente: a emergência da China vai continuar a gerar uma perda de posição relativa (embora resulte em grande medida num jogo de soma positiva) da UE. O que vai prevalecer? Os ganhos absolutos ou as perdas relativas?
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