Friday, November 30, 2007

Além da Cimeira: Um olhar sobre as relações entre a China e a União Europeia

José Carlos Matias, texto publicado no jornal Hoje Macau (30-11-2007)

Em Setembro de 2004, o académico norte-americano David Shambaugh escrevia, na revista “Current History”, que o relacionamento entre a China e a União Europeia estava a evoluir para um “eixo emergente que, com o tempo, será uma fonte de estabilidade num mundo volátil”. Nessa altura as visitas de alto nível e as cimeiras eram preenchidas por declarações de reforço da cooperação de uma parceria estratégica vista pelos dois lados como um jogo de soma positiva. De forma mais prosaica, o então Presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, recusava o que alguns críticos chamavam de “trade love affair”, garantindo que “se não estamos perante um casamento, trata-se pelo menos de um noivado muito sério”. Foi também nessa altura que os estados membros da UE estiveram perto de levantar o embargo à venda de armas que prevalece desde os acontecimentos de Tiananmen, em 1989. Este ano, o discurso começou a mudar. A desavença, esta semana, entre o Comissário do Comércio Peter Mandelson e a vice primeira-ministra Wu Yi ilustra que o “casamento” está a ganhar contornos diferentes. Bruxelas já começa a falar publicamente de outra forma para Pequim. Na segunda-feira, o comissário afirmou na capital chinesa que todos os anos chega à Europa uma “onda gigante” de produtos contrafeitos e que “a paciência dos europeus face a esta situação está a ser testada”, sublinhando que “é difícil prever qual será o limite”. No mesmo evento, num fórum sobre direitos de propriedade intelectual, a vice-primeira ministra Wu Yi mostrou estar muito desagradada com as afirmações de Mandelson. Wu Guangzhong, vice-director da Administração Geral para a Supervisão da Qualidade, afirmou que “esta não foi a melhor ocasião para falar desta maneira” e acusou Mandelson de estar a ser “injusto” face aos progressos registados na China recentemente no combate à pirataria no esforço pela melhoria da segurança e qualidade dos produtos.

A mudança de tom

Comentando o sucedido, Zhang Xiaojin, do Centro de Estudos europeus da Universidade de Renmin, dizia, na edição de 27 de Novembro do South China Morning Post que “a lua-de-mel nas relações sino-europeias acabou. A China e a UE são competidores estratégicos e é normal que os pontos de vista sejam expressos de uma maneira mais cortante. Mas a China não está ainda preparada, Pode ficar chocada com este tipo de linguagem da UE”. Embora este episódio por si não constitua um sinal de crise, certo é que a UE de Barroso, Merkel (que recebeu recentemente o Dalai Lama) e Sarkozy é diferente da de Prodi, Schroeder e Chirac. Onde os anteriores lideres viam sobretudo uma relação económica vantajosa que devia abrir caminho para uma aproximação política cada vez mais intensa como forma também de contrabalançar a hegemonia norte-americana e, simultaneamente, afirmar a posição autónoma da política externa europeia, os actuais - nitidamente mais transatlanticistas – olham para a China cada vez mais como um competidor que é preciso pressionar para que os interesses dos 27 não sejam prejudicados com a emergência chinesa. Naturalmente que uma abordagem às relações sino-europeias implica o cruzamento de muitos outros factores. Todavia, parece claro que – ainda que estruturalmente não haja alterações de fundo – a forma como os líderes europeus lidam com a China está a sofrer algumas alterações. Utilizando uma linguagem cara a Joseph S. Nye e Robert Kehonane, o relacionamento caracteriza-se cada vez mais por uma “interdependência complexa”, com interesses comuns e contraditórios.

O outro lado da equação

Além disso, é impossível olhar para este cenário sem ter em conta os EUA, É que ao longo de décadas as relações China-Europa sempre foram subsidiárias da relação bilateral mais importante neste início de século: Pequim-Washington. Os norte-americanos sempre viram com maus olhos as tentativas de aliança entre a UE e a China em áreas sensíveis como a defesa ou tecnologias sensíveis. Foi o caso do projecto europeu de navegação por satélite Galileo, que esteve sob o fogo de Washington não só por ser um futuro competidor do GPS, mas também porque a China entrou no empreendimento como principal parceiro externo. Outro exemplo claro diz respeito ao embargo à venda de armas. Em 2004 e 2005 os EUA e os seus aliados mais próximos na UE conseguiram que não houvesse consenso para o fim da proibição da venda de armas à China, quando o então chefe de estado francês Jacques Chirac e Schroeder eram dinamizadores da iniciativa (com Portugal a subscrever também essa posição). A argumentação chinesa baseava-se em duas constatações primordiais: por um lado, a China é “apenas” o segundo maior parceiro comercial da UE, por outro, que sentido faz colocar um país com o qual Bruxelas tem uma parceria estratégica, investimentos e inúmeros projectos de cooperação ao nível do Zimbabué? A perspectiva segundo a qual para levantar o embargo é preciso que a China melhore de forma significativa a situação dos direitos humanos foi a determinante no discurso oficial. Em todo o caso, o embargo acabou por ser um assunto praticamente ausente na Cimeira que decorreu esta semana. O défice comercial da UE face à China, a segurança dos produtos fabricados na China, os produtos contrafeitos e o valor do yuan dominaram a agenda dos encontros de José Sócrates, presidente em exercício da União Europeia, e de Durão Barroso com os dirigentes do governo central. Depois da foto a três com os sorrisos rasgados de Wen, Sócrates e Barroso, os dirigentes europeus disseram estar satisfeitos. Mandelson afirmou que “chegou infeliz”, mas sai “encorajado” com as promessas da China de tomar medidas para reduzir o superavit comercial que tem nas trocas bilaterais, para que as forças do mercado tenham mais influência no valor da divisa chinesa e com vista ao combate às violações dos direitos de propriedade intelectual. Para isso foram criados novos mecanismos de diálogo na já preenchida arquitectura de diálogo bilateral entre as duas partes.

Ganhos absolutos, perdas relativas

Os que depositam esperanças nas virtudes do “institucionalismo” argumentam que estes problemas vão ser resolvidos através do diálogo, como aconteceu em 2005 quando Mandelson e o ministro do Comércio Bo Xilai resolveram a questão da entrada dos têxteis chineses no espaço europeu. No futuro próximo, é provável que os mecanismos de diálogo formal abundantes entre Bruxelas e Pequim possam ser suficientes par ultrapassar estes obstáculos. Contudo, à medida que avança vertiginosamente o processo de industrialização e a modernização da China, é natural que o “aparelho produtivo” chinês seja cada vez mais competitivo também nas indústrias de capital intensivo – o que está a acontecer há vários anos – criando bens de consumo com mais-valias que podem ser quase imbatíveis na economia internacional. Em áreas estratégicas, como a aeronáutica e a tecnologia de navegação e posicionamento, a China já anunciou o lançamento de um competidor da Airbus e da Boeing e de um sistema de navegação por satélite – Beidou II – que poderá constituir uma alternativa ao GPS e ao Galileo. Em suma, no futuro tudo irá depender das tensões entre a competição e a complementaridade das duas economias, da coesão da política externa comum da UE, da outra parte da equação nesta relação – os EUA – e da forma como os agentes económicos e políticos encararem o que é cada vez evidente: a emergência da China vai continuar a gerar uma perda de posição relativa (embora resulte em grande medida num jogo de soma positiva) da UE. O que vai prevalecer? Os ganhos absolutos ou as perdas relativas?